Um amor chamado queijo. Isso é o que move Christiane Brandão. Aos 37 anos, ela comanda a fazenda Maria Nunes, que dá nome ao produto. Quinta geração da família a trabalhar com o item, Christiane é a primeira mulher a assumir o comando da fazenda, localizada no município de Serro, em Minas Gerais, conhecido também como "Terra do Queijo". Para isso, teve que enfrentar o machismo até dentro de casa e colocou como meta ter a produção de queijo 100% feminina.
A especialidade da produtora é o tradicional queijo maturado, predominante na região do Serro há 300 anos e que levou o queijo Maria Nunes até a França.
Chamado em espera
“Quando eu era criança eu esperava o vaqueiro sair do quarto de queijo para entrar e roubar a massa do queijo, ainda molinha, antes de ir para a forma. Eu cresci comendo massa de queijo e o leite no pé da vaca”, narra Christiane.
Seu pai, Francisco Brandão Neto, era dono de algumas fazendas na região do Serro. Vivendo tão perto das produções, ela logo se encantou pelo produto. Quando criança, sonhava em ser veterinária para cuidar das vacas da fazenda.
Mas, conforme foi crescendo, por mais que tentasse se envolver na administração da propriedade, ela encontrava em seu pai uma barreira.“Meu pai era um homem antigo, muito machista. Ele tinha uma resistência em passar a administração da fazenda e partilhar isso com os filhos, a gente ficou meio afastado”, conta. Com isso ela decidiu ir para Belo Horizonte, onde se formou em sistema da informação.
Cerca de 10 anos depois, já com 29 anos, Christiane retornou para a roça devido à morte de seu pai. Quando soube o que tinha acontecido, largou tudo e voltou para a propriedade onde foi criada. Lá, ela foi responsável por gerenciar o inventário dos bens da família por 5 anos, além de continuar a produção de queijo.
Apenas depois desse período ocorreu a divisão entre os 6 irmãos e ela. Por meio de um sorteio, teve a felicidade de ficar com a fazenda Maria Nunes.
Construindo do zero
O pai de Christiane tinha 20 funcionários, diaristas e fixos. Mas, por causa dos processos de inventário, o dinheiro ficou preso e muitos dos colaboradores tiveram que ser demitidos, ficando apenas 4. “Tive que ir para o curral, para o mato, para ajudar no trabalho diário”, explica.
Após tantos anos impedida de trabalhar na fazenda, Christiane teve que se virar para aprender a administrar. Como herança, ela também recebeu 25 vacas e 25 bezerros, que foram vendidos para que ela pudesse construir na propriedade que herdou, que ainda era apenas um terreno. A partir daí, ela levantou o curral, onde as vacas são ordenhadas. Depois, a queijaria para a maturação do queijo, o curral de espera, o depósito e assim por diante.
E agora falta a eletricidade, que, sem ela, Christiane não atinge toda a sua produtividade e tem um prazo menor para conseguir vender todos os queijos, já que não consegue regular a temperatura onde ficam armazenados. Ela tem enfrentado problemas com a fornecedora da região, que não atende às suas solicitações.Falta também construir a casa dentro da propriedade para que Christiane e sua filha, Jady Brandão, possam morar lá.
Por causa disso, a produtora acorda 4 horas da manhã para chegar à fazenda às 5 horas e começar a trabalhar. Ela ajuda seu único funcionário a ordenhar, ainda que já tenha adotado o processo mecânico. Ela é quem faz o restante das tarefas, com auxílio de sua filha, que cresceu na fazenda e aprendeu as técnicas com a mãe.
Christiane também trabalha com as atividades de vendas, marketing, envios e todo o resto da produção. Sua propriedade atualmente tem 130 hectares e ela consegue fazer 15 queijos por dia. O seu rebanho conta com 30 vacas e 30 bezerros.
O grande obstáculo
Para Christiane, apesar de todas as problemáticas enfrentadas, a que mais a incomoda é o machismo:
“Você tem que enfrentar dificuldades de uma área dominada por homens, mesmo que as mulheres lá atrás já trabalhavam, eram os homens que estavam à frente liderando, dando ordens”, explica. “Então, os trabalhadores rurais não estão acostumados, não gostam de receber ordem de mulher, não respeitam a sua propriedade porque é de mulher. Você ouve piadas o dia inteiro, ouve insinuações”, desabafa.
A princípio, quando a produtora ouvia essas piadas ou pessoas duvidando que ela seria capaz de administrar a propriedade sozinha, ela brigava, mas isso passou a ser muito desgastante. Portanto, decidiu se impor como chefe e provar a sua capacidade.
“A gente resolve só mostrar o resultado, parar de ouvir. Porque, se formos ouvir, a gente não faz nada, deixa de crescer”, diz Jady.
Porém, as experiências deixaram marcas e até hoje Christiane não se sente confortável trabalhando com homens, pois acredita que, mesmo que na sua frente a tratem bem, ainda há um ar de desconfiança.
“Minha mãe sempre ouviu que seria muito difícil para ela e que era serviço para homem. Por mais que ela mostre os resultados que ela está conseguindo, isso não muda”, diz a filha da produtora.
Olhando também para as funcionárias da fazenda, quando ainda administrava o inventário das propriedades do seu pai, ela decidiu fazer algo por elas. A primeira medida foi igualar os salários: ela percebeu que as mulheres ganhavam menos que os homens para executar a mesma função.
Depois, ela começou a praticar a escuta: as funcionárias mulheres começaram a ter espaço para dar sugestões sobre as melhores maneiras de trabalhar. O queijo leva o nome da propriedade e esta, por sua vez, foi nomeada há mais de 100 anos em homenagem à esposa de um antigo dono, que era muito apaixonado por ela.
O pai de Christiane comprou a fazenda, ainda na década de 70, de um primo que era neto da Maria Nunes. Encantada pela história, a produtora decidiu manter o nome. O carro chefe da Maria Nunes é o queijo maturado. Algumas técnicas são fundamentais para fazê-lo, como o sistema bezerro ao pé, em que o filhote mama na mãe todos os dias. Quando não estão se alimentando, os animais são criados soltos. O bem-estar do animal é uma das grandes preocupações da produtora. “Um animal saudável e feliz é o principal ingrediente para qualquer produto de qualidade que venha de origem animal”, conta Christiane.
Além do leite, a produção é feita a partir do soro retirado do próprio queijo, método chamado de “pingo de ontem”, por causa do queijo usado ter sido feito sempre no dia anterior à retirada do soro. Por meio dele, o queijo é fermentado. A técnica está presente há várias gerações na família de Christiane, que explica que seu tataravô, seu avô e seu pai a usaram e, hoje, ela usa. Mas isso não acontece só em sua fazenda, é uma tradição da região do Serro.
Após o pingo, o queijo vai para o quarto onde acontece a maturação. Lá, ele é lavado, ralado, lixado e escovado. Para o processo ser completo, o queijo só pode ser vendido após 17 dias. Todas essas etapas são reproduzidas desde que chegaram os portugueses e, com eles, a técnica, 300 anos atrás.
Por causa disso, este sistema tem o selo de produto com Indicação Geográfica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e é reconhecido também pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. Então, cada passo do preparo consta em registro, junto à Associação dos Produtores Artesanais do Queijo do Serro (APAQS) e todos os queijeiros de lá devem segui-lo para se enquadrarem na certificação.
“Eu vi que era uma forma de valorizar e agregar valor ao meu produto. A maturação traz valor, sabor, experiências sensoriais que o seu paladar vai ter quando você come o queijo”, justifica Christiane sobre por que decidiu continuar com o método. Para Jady, existe ainda mais um ingrediente: “Eu acho que como a gente faz, o sentimento que a gente coloca no que a gente faz é o nosso diferencial”.
Dias de glória
O divisor de águas do queijo Maria Nunes foi quando ele recebeu o seu primeiro prêmio, lembra Christiane. Foi na Semana Mesa SP, em 2018, quando ganhou medalha de bronze no III Prêmio Queijo. Foi aí que a produtora começou a obter reconhecimento pelo seu trabalho.
“A gente não tinha nem estrutura direito. A parceria com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), a moça que nos apoiava nos incentivou a mandar (o queijo). Achei que nem tinha chance de ganhar”, lembra Christiane
“A partir disso a gente começou a acreditar mais no nosso potencial e a analisar o que podíamos melhorar”, conta Jady. Depois deste prêmio, o queijo Maria Nunes ganhou uma página no Instagram, onde são postados conteúdos sobre ele e também é realizada a venda para o Brasil inteiro.
Mãe e filha começaram a apostar cada vez mais em premiações. Na da Semana Mesa SP, elas participam todos os anos e já ganharam o bronze três vezes consecutivas. Em 2019, o queijo Maria Nunes foi parar na França, onde ganhou a medalha de prata no concurso de Melhor Queijo, com 900 concorrentes de mais de 20 países. A partir daí, veio também a credibilidade e visibilidade no setor.
Também em 2019, ele ganhou a medalha de prata no Mundial de Queijo do Brasil, em Araxá, Minas Gerais.
Interrupção do sonho
Com a chegada da pandemia, o crescente sucesso do queijo Maria Nunes teve que desacelerar. A produção, que até então era 100% feminina, teve sua leiteira afastada, entre outros motivos, por ser do grupo de risco.“Com a pandemia foi um sufoco, muitos empórios fecharam, não consegui vender queijo, teve momentos de ter um estoque muito grande”, narra Christiane.
“Como eu não tenho luz na propriedade, eu não tinha como armazenar esses queijos e eu precisei fazer campanha de venda, fiz vaquinha online.... O que você imaginar que eu fiz pra vender esses queijos eu fiz”. Como alternativa, ela decidiu começar a comercializar leite e, por meio das campanhas e com ajuda da Cooperativa de Produtores CooperSerro, ela conseguiu vender todo o estoque de queijo também. “Aos poucos a gente vem maturando e vendendo os maturados sob encomenda, para não termos o problema de estoque", diz.
Muitos dos empórios onde o queijo era vendido tiveram que ser fechados de vez, por quebrarem na pandemia. A saída, além das campanhas e da cooperativa, foi fazer parcerias. Christiane conta que surgiu uma modalidade de vendedores por WhatsApp, que sugerem queijos para acompanhar um vinho, por exemplo, e tem auxiliado muito suas vendas.
Outro problema foi o aumento dos preços em todos os setores da produção. “A gente não pode repassar isso para o valor do produto, se não a gente não consegue vender, porque fica muito caro”, explica.
Por causa disso, os custos da produção ainda são mais caros que o lucro. “Faço sorteio. Hoje eu pago um boleto, no outro mês, o outro”.
Olhando para o futuro
Christiane sabe aonde quer chegar com a sua produção: ela deseja voltar a ter um quadro de funcionários 100% feminino.
“É valorizar o trabalho da mulher, dá oportunidade de trabalharem, terem seu dinheiro, se posicionarem”, explica. Além disso, ela quer investir no mercado de queijo orgânico, também para um melhor bem-estar dos animais e para aumentar a qualidade do seu produto.
Por fim, ela deseja trabalhar apenas com vacas da raça Jersey, que considera de mais fácil manejo. E o futuro do queijo Maria Nunes não para por aí, se depender de Jady. Aos 20 anos, ela está se graduando em agronomia e na faculdade vê novos caminhos para a propriedade.
“Quero utilizar mais o pasto da fazenda, com planejamento de plantações para melhorar o leite e, consequentemente, o queijo”. A jovem produtora também se vê perpetuando as tradições da família.
“Eu não me vejo sem ser mexendo na minha propriedade, com os meus animais, não me vejo traçando outros caminhos que não seja a minha fazenda”, conta”. Neste meio tempo, as especializações continuam. Christiane tem a assistência técnica e gerencial gratuita do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) tanto para a pecuária de leite quanto para a agroindústria, para aprimorar a sua propriedade.
Fonte: G1