Série Especial por Francy Teixeira
Era 26 de julho de 2003. O Brasil se chocava com a notícia da morte prematura de Francisca Trindade, aos 37 anos, vítima de um aneurisma cerebral. O Piauí, perplexo, perdia não apenas uma parlamentar em pleno mandato, mas uma de suas vozes mais potentes — negra, feminina, popular. Passadas duas décadas, seu nome segue vivo em cada canto onde a luta por justiça ecoa.
UMA INFÂNCIA FORJADA NA LUTA
Filha de Raimundo Pereira da Trindade e Lídia Maria da Trindade, Francisca nasceu no bairro Água Mineral, na zona norte de Teresina, em 26 de março de 1966. Cresceu entre ruas de chão batido e uma comunidade que lutava por dignidade. Desde cedo, ela já se mostrava inquieta com as injustiças ao seu redor.
Foi na Pastoral de Juventude do Meio Popular (PJMP) que descobriu sua vocação para transformar a realidade, e foi com coragem que fundou a Associação de Moradores do Bairro Água Mineral, dando voz a quem vivia silenciado. Ali nascia uma líder.
O CAMINHO DA REPRESENTAÇÃO POPULAR
A força de Trindade no movimento popular a levou à presidência da Federação das Associações de Moradores e Conselhos Comunitários do Piauí (FAMCC), entre 1992 e 1994. Seu envolvimento com o Partido dos Trabalhadores teve início ainda nos anos 1980, numa época em que o Brasil engatinhava para fora da ditadura.
Em 1995, assumiu vaga na Câmara Municipal de Teresina como suplente de Wellington Dias, e em 1996 foi eleita vereadora. Dois anos depois, chegou à Assembleia Legislativa do Piauí, sendo a mais votada na capital. Em 2002, veio a consagração: com 165.190 votos, tornou-se a deputada federal mais votada da história do estado até então.
O DIA EM QUE A LUTA SE CALOU
Era um dia comum, mas carregado de significado. No 25 de julho de 2003, enquanto discursava na Conferência Estadual de Apicultura e Pesca, Trindade desmaiou. Estava ali, entre o povo, falando de desenvolvimento, de trabalho, de dignidade. Levava em si o peso de ser mulher, negra, nordestina e deputada federal.
Foi transferida com urgência para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Lutou por algumas horas. No dia seguinte, morreu em coma, deixando um rastro de dor — e de legado.
UMA DESPEDIDA HISTÓRICA
No Ginásio Verdão, em Teresina, uma multidão em pranto acompanhou o adeus à deputada. “O Brasil perdeu uma gigante”, disse à época o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que compareceu à cerimônia ao lado de autoridades e lideranças de todo o país.
Ela deixou o companheiro de vida, Edilberto Borges (Dudu), e dois filhos, Camila Kissy e Yan Kalid. Mas deixou, sobretudo, milhares de filhos e filhas da esperança, que seguem sua caminhada.
O LEGADO QUE FLORESCE
A ativista social Sônia Terra, sua companheira de jornada, resumiu a grandeza de Trindade em um tributo emocionante:
“Falar de Francisca Trindade é importante, sobretudo, para que as novas gerações possam conhecer sua história [...] Sua história de representatividade negra nos impulsiona a seguir firmes na luta antirracista, potencializando cada vez mais nossa participação política social na sociedade piauiense.”
Trindade foi ancestralidade, foi coragem e foi voz. Enfrentou o racismo, desafiou o patriarcado e gritou pelos invisíveis com a força dos que sabem que nasceram para mudar o mundo.
TRINDADE VIVE
Nas palavras de suas admiradoras, Francisca das Chagas da Trindade “segue frutificando suas sementes em cada mulher negra que segue desafiando o poder opressor e recriando-se em suas potencialidades com a coragem, a altivez e a ousadia de ser herdeira de Esperança Garcia.”
Se a política do Piauí hoje é mais diversa, se mulheres negras ousam disputar espaços de poder, se comunidades continuam a se organizar e resistir, é porque Trindade passou por aqui — e fincou raízes.