SYLVIA COLOMBO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que o projeto de moeda comum entre Brasil e Argentina está sendo trabalhado pelos dois países. A declaração foi dada após uma reunião entre Lula e o presidente argentino, Alberto Fernández, em Buenos Aires nesta segunda-feira (23).
"Acho que com o tempo isso [moeda comum] vai acontecer, e é necessário que aconteça", afirmou Lula.
O presidente brasileiro diz que o projeto de moeda comum será tratado junto a propostas de comércio exterior e de transações feitas pelas equipes econômicas da Argentina e do Brasil, após "muitos debates e reuniões".
"Se dependesse de mim a gente teria comércio exterior sempre nas moedas dos outros países, para que a gente não precise ficar dependendo do dólar. Por que não tentar criar uma moeda comum entre os dois países, com países do Brics?", disse Lula.
Os governos do Brasil e da Argentina assinarão, ainda, um acordo para financiar exportações brasileiras em operações com garantias do país vizinho com liquidez internacional, para tentar reacender o comércio entre os dois países, disse à Reuters uma fonte do governo brasileiro que participou das negociações.
O acordo prevê a abertura de crédito de bancos brasileiros para importadores argentinos e a criação de um fundo pelo governo brasileiro para garantir o pagamento dos empréstimos.
Nessa operação, segundo a fonte, o banco paga diretamente ao exportador brasileiro, com garantia do Tesouro nacional, enquanto o Brasil recebe da Argentina o mesmo valor, depositado em Nova York, de títulos com liquidez internacional.
"Pode ser títulos chineses, pode ser contratos de compra de gás, de trigo. Algo com liquidez internacional que garanta que, no caso de não pagamento pelo importador argentino, o Brasil possa acessar para compensar esse não pagamento", disse a fonte.
Toda a operação, segundo a fonte, seria feita em reais.
O acordo prevê ainda a garantia de que as empresas brasileiras consigam retirar fundos da Argentina sem dificuldades. Sem divisas, o país tem controlado a saída de recursos de empresas estrangeiras, o que não deve acontecer mais com as brasileiras.
O acordo também prevê a organização de um grupo de trabalho para criação, em médio e longo prazos, de uma conta única de compensação na América do Sul nos mesmos moldes do negociado agora com a Argentina, mas mais sistematizado e com uma governança que autorize o acesso do país aos recursos se cumprir determinadas regras, como por exemplo inflação de um dígito e não estar em default.
Brasil tem orgulho de financiar projetos na América Latina, diz Lula
Com relação à possibilidade de que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) volte a financiar obras em outros países da América Latina, Lula afirmou que isso seria "motivo de orgulho" e que o Brasil tem o dever de ajudar a seus vizinhos.
Ele disse, ainda, que se os empresários brasileiros mostrarem esforço, as condições para a criação de um gasoduto entre Brasil e Argentina poderão ser criadas.
"Eu tenho certeza que os empresários brasileiros têm interesse no gasoduto, nos fertilizantes que a Argentina tem, no conhecimento científico e tecnológico da Argentina. E se há interesse dos empresários e do governo, e nós temos um banco de desenvolvimento para isso, nós vamos criar as condições para fazer o financiamento que a gente possa fazer para ajudar no gasoduto argentino", disse Lula.
Críticas a Bolsonaro
Fernández disse que o encontro com o petista, na Casa Rosada, nesta segunda (23), representa o início de um laço estratégico mais profundo que "durará muitas décadas". As falas foram permeadas por elogios ao brasileiro e críticas a Jair Bolsonaro (PL) e a seu antecessor, Maurício Macri.
"Vi como [Lula] liderou políticas públicas que tiraram milhões de pessoas da pobreza", afirmou Fernández, acrescentando que "não vai deixar que nenhum fascista no Brasil se aposse da soberania popular", referindo-se ao ataque golpista às sedes dos Três Poderes, em Brasília, no último dia 8.
"Nossos povos só querem bem-estar e justiça", prosseguiu o líder argentino. "O Brasil teve de atravessar Bolsonaro, e a Argentina teve de atravessar Macri; agora é o momento de entrar numa nova etapa."
Já Lula chegou a pedir desculpas pelas "ofensas do ex-presidente genocida". Nos quatros anos em que Bolsonaro ficou no poder, a relação com a Argentina foi marcada por rusgas, agravadas pelo fato de Fernández ter visitado Lula na prisão, um gesto que o presidente brasileiro disse que "não esquecerá".
Outro aspecto a abalar a relação com Fernández foi a torcida declarada de Bolsonaro por Mauricio Macri, derrotado no pleito de 2019. Agora é Lula quem percorre esse caminho, ao pedir, ao lado do atual presidente do país vizinho, que a Argentina "não permita a vitória da extrema-direita nas eleições de 2023".
Lula afirmou ainda que, no período de seus dois outros mandatos, a América Latina chegou perto do "sonho dos libertadores" como nunca antes e que a reaproximação entre os dois países é uma "retomada de relação que jamais deveria ter sido truncada". Lula acrescentou que o Brasil não tem motivos para ter rusgas com outras nações da região. "Pela primeira vez na minha vida torci para a Argentina", disse ele, referindo-se à final da Copa do Qatar, entre Argentina e França. "Mas agora chega, é a vez do Brasil."
Ao comentar a possível criação de uma moeda comum, Lula confirmou que os países trabalham no projeto e que, se dependesse dele, seria bom "não ser necessário ter sempre o dólar como referência".
Já em relação à possibilidade de que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) volte a financiar obras em outros países da América Latina, o petista afirmou que esse cenário seria "motivo de orgulho" e que o Brasil tem o dever de ajudar vizinhos. Lula disse ainda que, se empresários brasileiros mostrarem esforço, voltará "a criar condições de financiamento de um gasoduto".
Além da visita ao presidente argentino, a assessoria de Lula também havia dito que o petista teria um encontro bilateral com o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro. Mas a reunião, que seria a primeira entre os líderes dos países desde que reataram os laços diplomáticos, rompidos em 2020 por Bolsonaro, foi cancelada poucas horas depois por, segundo a equipe do presidente brasileiro, decisão de Caracas.
Questionado sobre o cancelamento, Fernández afirmou que "todos os países estão convidados" para a Cúpula da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e que os líderes de Cuba e Venezuela são bem-vindos. Segundo o argentino, não há informações de que Maduro não vá à reunião.
Lula fez críticas à oposição da Venezuela e disse que, ao reconhecer Juan Guaidó como presidente interino, "se fez uma coisa abominável com a democracia". O petista também defendeu o fim do embargo econômico contra Cuba. "Eles querem ter o modelo deles, e nós temos que ajudar naquilo que pudermos."
Uma das primeiras medidas do Itamaraty no atual governo Lula foi anunciar o retorno do Brasil à Celac, colegiado que Bolsonaro havia abandonado em 2020. Lula chegou à Casa Rosada, sede da Presidência da Argentina, às 11h para o encontro com Fernández. Ambos estavam acompanhados das primeiras-damas.
Antes, o petista participou de uma cerimônia de entrega de flores em homenagem ao general José de San Martín, herói da independência local. Ainda na noite desta segunda-feira, os líderes brasileiro e argentino assistirão juntos a uma apresentação no Centro Cultural Kirchner, numa nova demonstração da retomada das relações entre os dois principais parceiros do Mercosul após o isolamento imposto por Bolsonaro.