O valor médio das aposentadorias do INSS era de R$ 1.766 por mês em fevereiro (dado mais recente). Suponha que, por um desastre qualquer, esse benefício caísse para R$ 1.219 daqui a um ano. Mais precisamente, suponha que esse valor refletisse o poder de compra da aposentadoria média em fevereiro de 2025, representando uma redução real anual de 31%. (As informações são do colunista da Folha, Vinicius Torres Freire).
Esse cenário ocorreu recentemente na Argentina, onde o valor médio das aposentadorias sofreu um corte real semelhante no último ano. Além disso, a despesa com servidores públicos no país diminuiu 16%.
Esse é o plano de Javier Milei para reduzir o déficit do governo: um arrocho por meio da inflação, ou "licuación" (liquefação), como dizem. As despesas do governo não são reajustadas no mesmo ritmo do aumento de preços, o que, em termos reais, resulta na redução dessas despesas.
Esse plano já começou a gerar problemas políticos. A Câmara dos Deputados aprovou uma nova regra de reajuste das aposentadorias, com correção pela inflação passada e algum aumento real, com 67% dos votos de um plenário quase cheio.
Se passar no Senado, Milei promete vetar. O veto presidencial só pode ser derrubado com dois terços dos votos em cada casa do Parlamento. Embora difícil, o governo já está perdendo por essa margem. Milei tem a aprovação de metade dos eleitores.
Apesar do arrocho brutal, não houve protestos populares suficientemente grandes para desestabilizar o governo politicamente. No entanto, muitas pessoas, incluindo jornalistas e consultores econômicos geralmente favoráveis ao governo, se perguntam se esse ajuste primitivo e doloroso para a população pode ser sustentável.
Milei ainda não possui um plano econômico sólido. Quase nenhuma de suas propostas foi aprovada no Congresso até agora. Não há um programa de receitas e despesas previsíveis. Entre outras aberrações, o Banco Central é disfuncional, a política monetária é inexistente, há controles de câmbio absurdos e o governo não tem crédito.
O governo não consegue se financiar no mercado doméstico, recorrendo à emissão de dinheiro se o déficit voltar. Ainda assim, o mercado interno e externo ficou animado com o superávit nominal de 0,2% do PIB no primeiro terço do ano, indicando que o governo pagou suas contas e juros, alcançando saldo positivo. Em contraste, o Brasil enfrenta um déficit nominal anual de 9% do PIB.
Milei alcançou o superávit graças à "licuación". A receita do governo caiu 7% em termos reais no primeiro quadrimestre, mas a despesa diminuiu 29%. O investimento em obras e equipamentos caiu quase 84%, e as transferências para as províncias, 76%. A taxa de juros negativa e o controle de capitais também ajudam a reduzir a dívida e a poupança financeira em pesos.
A ideia de Milei era reduzir gastos e aumentar impostos, mas sua política impopular impediu novas receitas tributárias. Parlamentares também resistem a eliminar isenções para empresas. Sem um milagre de investimento produtivo privado, esse esquema é insustentável. Mesmo causando grande sofrimento, o "ajuste" ainda precisa de um plano de conserto estrutural da economia.
O PIB está caindo cerca de 5% ao ano. Ao final de 2024, a queda deve ser de 3% a 4% (no ano passado foi de 1,6%). Dado o desastre atual, isso seria um mal menor (na Grande Recessão no Brasil, o PIB caiu 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016). Seria o milagre da liquidação de um povo calado e desesperado, sem ver alternativa.