Documentos do governo dos Estados Unidos entregues ao Brasil mostram que os diplomatas norte-americanos tinham conhecimento das prisões ilegais, de várias técnicas de tortura e do acobertamento dos casos pelo governo militar durante a ditadura brasileira (1964-1985).
A papelada comprova que o Departamento de Estado norte-americano, a despeito de certo constrangimento com as denúncias internas das violações sistemáticas de direitos humanos no Brasil, fez vistas grossas às práticas em nome do combate ao "terrorismo".
A Comissão Nacional da Verdade divulgou 43 documentos entregues pelo governo dos Estados Unidos ao governo brasileiro durante a visita do vice-presidente norte-americano, Joe Biden, ao país, no mês passado.
Eles foram produzidos pela diplomacia dos EUA entre 1967 e 1977. Deles, 18 ainda estavam sob sigilo. Os originais em inglês foram publicados na página da comissão na internet.
Um telegrama enviado em abril de 1973 pelo Consulado-Geral do Rio de Janeiro para o Departamento de Estado dos EUA cita o crescimento de prisões de pessoas consideradas subversivas pelo regime --a maioria professores, estudantes universitários e jornalistas-- e o emprego de métodos de tortura psicológica e física, por parte de militares do 1º Exército, para obter delações.
O documento afirma que os agentes de repressão desenvolveram métodos eficientes de tortura psicológica, mas que, diante de presos mais resistentes, recorriam a métodos antigos de tortura física, como choques elétricos e agressões no pau-de-arara, que muitas vezes terminavam em morte.
O mesmo telegrama descreve a prática de informar a morte como ocasionada por tiroteio durante tentativa de fuga ("shoot out technique"), usada "para afastar acusações de mortes sob tortura na imprensa internacional".
A conclusão do relatório é que, apesar de denúncias feitas em universidades e pela Igreja Católica, a reação da opinião pública era "morna".
"As pessoas continuam mais interessadas no desempenho da economia do que em questões políticas". O telegrama também cita o temor de se realizar manifestações contra o regime.
Outro documento, intitulado "Memorando da conversa", de 7 de outubro de 1970, relata o caso de Robert Henry Horth, um cidadão norte-americano preso em setembro daquele ano após desembarcar no aeroporto de Viracopos, em Campinas, no interior de São Paulo.
Horth, então com 30 anos, era diretor de Estatística da empresa brasileira Agroceres, na qual a Ibec (International Basic Economy Corporation), da família Rockefller, tinha participação.
Deops
Confundido com o ativista de esquerda Robert Roth, ele ficou preso nas dependências do antigo Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de São Paulo, e foi mantido incomunicável por três dias até que um funcionário do consulado dos Estados Unidos conseguisse a libertação.
Apesar de não ter sido torturado, Horth presenciou e ouviu relatos de tortura de outros presos e informou o consulado, que repassou as informações ao Departamento de Estado dos EUA.
Relatório enviado pelo Consulado de São Paulo ao governo norte-americano em 8 de maio de 1973 relata de modo detalhado um diálogo com um informante que atuava como torturador do Centro de Inteligência Militar em Osasco (Grande SP).
Entre os métodos de tortura citados pelo informante, está o choque elétrico e deixar a vítima sem comer por dias. O torturador afirma ainda que matou um preso disparando uma arma automática da cabeça aos pés.
Também há documentos que fazem descrição detalhada dos Esquadrões da Morte, que atuavam, com consentimento dos governos e dos militares, especialmente nas periferias de São Paulo e Rio de Janeiro. Um documento de 6 de agosto de 1971 afirma que os esquadrões mataram mais de 800 pessoas em dez anos, a maioria traficantes de drogas, "peixes pequenos" e infratores da lei.
Detalhes "surpreendem"
Para o jurista Pedro Dallari, coordenador da Comissão Nacional da Verdade, os documentos contrariam a versão apresentada pelas Forças Armadas de que não houve prática de tortura e outras ilegalidades dentro de instalações militares.
"É a comprovação cabal da prática de tortura e da ocorrência de morte nas instalações militares. Isso é importante porque as Forças Armadas dizem que não há comprovação de tortura e mortes nas instalações militares", afirmou ao UOL.
"O que surpreende é o nível de detalhes, de informações, que os diplomatas estrangeiros tinham", disse Dallari.