O ministro da Justiça José Eduardo Cardozo chamou na semana passada o sistema carcerário brasileiro de "medieval" e disse que preferia morrer a cumprir pena nele por um longo tempo. Especialistas ouvidos pela BBC Brasil afirmaram que ele está certo, mas disseram que o governo federal poderia fazer mais para resolver o problema.
Atualmente o Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, segundo a organização não-governamental Centro Internacional para Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês). O país só fica atrás em número de detentos para os Estados Unidos (2,2 milhões), a China (1,6 milhão) e a Rússia (740 mil).
Entre os problemas do sistema carcerário estão superlotação, tortura, maus tratos, ineficácia de programas de ressocialização e uma política de aprisionamento "discriminatória".
Aliados a uma suposta falta de vontade política, esses problemas deram margem ao surgimento de facções criminosas como o PCC (Primeiro Comando da Capital) - envolvido em uma onda de violência que já deixou 92 policiais mortos em São Paulo neste ano.
"Se o ministro quis dizer que o sistema carcerário é arcaico e expõe os presos a condições sub-humanas, então ele está correto", disse Melina Risso, diretora do Instituto Sou da Paz.
"Infelizmente o ministro está certo, a realidade é triste e preocupante. Mas falta vontade política para ter um sistema prisional diferente. Ele é medieval há muito tempo", afirmou Lucia Nader, diretora executiva da organização de direitos humanos Conectas.
Segundo ela, embora a administração penitenciária seja tarefa dos Estados, a União poderia exercer um papel indutor para aprimorar o sistema carcerário. "(O governo federal) poderia estabelecer políticas, lançar linhas de financiamento e refletir sobre o modelo atual. Não basta abrir mais vagas, é preciso ver a qualidade das que já existem".
Na última semana, o Ministério da Justiça foi acusado de gastar só um quinto da verba orçada de mais de R$ 300 milhões para financiar e melhorar o sistema prisional. A pasta se defendeu dizendo que repassou recursos a Estados, que os teriam devolvido.
Veja abaixo alguns dos principais problemas das prisões brasileiras, segundo as especialistas.
Superlotação
O sistema carcerário brasileiro abriga atualmente 514 mil detentos, mas possui vagas para apenas 306 mil - um deficit total de 208 mil vagas. Os dados são de dezembro de 2011, a estatística mais recente divulgada pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional), do Ministério da Justiça.
"Em algumas prisões, os detentos têm que se revezar para dormir, pois as celas estão tão cheias que todos os presos não podem deitar ao mesmo tempo", disse Nader.
Um levantamento do deputado federal Domingos Dutra (PT-MA), que foi relator da CPI do Sistema Carcerário (em 2008), identificou unidades prisionais onde cada detento tinha em média 70 centímetros quadrados para viver. Pela lei brasileira, o espaço mínimo necessário é 6 metros quadrados por preso.
Política de encarceramento
A população carcerária brasileira aumentou de 232 mil no ano 2000 para 496 mil em 2010 - uma elevação de mais de 110%. No mesmo período, segundo o IBGE, a população cresceu apenas 12%.
Para as especialistas, o modelo de política de encarceramento atual deve ser revisto, com a análise da possibilidade de aplicação de penas alternativas à reclusão.
Autores de crimes menos violentos - como o furto, por exemplo - não deveriam ser punidos com a prisão, segundo Risso. "Só os presos por furto representam quase 15% da população carcerária", diz.
O perfil da população presa, disseram, também reflete a desigualdade social e é discriminatória. Mais de 60% dos detentos cumprindo pena no país não conseguiu passar do ensino médio. Mais da metade tem menos de 30 anos e aproximadamente 60% são negros e pardos.
Tortura
Embora sejam relativamente frequentes, não há dados estatísticos nacionais confiáveis sobre casos de maus tratos e tortura no sistema penitenciário, segundo Nader. De acordo com ela, o Brasil aderiu em 2005 a um tratado internacional que deu origem à elaboração de um projeto de lei que criaria o Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura - um órgão que inspecionaria presídios para constatar abusos, entre outras ações preventivas.
Segundo o tratado, esse órgão deveria ter sido criado em 2008, mas até hoje o projeto de lei tramita no Congresso. "Hoje há pouca punição para os responsáveis pelas agressões", disse.
Facções criminosas
Ao invés de terem acesso a políticas de reinserção social efetivas, grande parte dos detentos brasileiros fica exposta à influência do crime organizado. Dentro das cadeias, muitos deles ficam submetidos às regras de facções criminosas. Uma vez em liberdade, acabam voltado para o crime. "A taxa de reincidência no crime hoje é de cerca de 70%", disse Nader.
O crime organizado se aproveita desse cenário para se fortalecer e legitimar seu discuso de combate a um Estado abusivo entre os detentos. Com acesso a telefones celulares, os líderes de facções criminosas acabam comandando seus subordinados e gerindo o tráfico de drogas de dentro das prisões - mesmo nas de segurança máxima, segundo investigação recente da Polícia Federal.
"As autoridades públicas do Brasil têm a competência de comandar os estabelecimentos prisionais, mas infelizmente, por omissão política, em um grande número de presídios o comando é das facções (criminosas)", disse Nader.
Segundo Risso, um dos caminhos para enfraquecer o crime organizado seria combater a corrupção de agentes públicos, que fornecem telefones celulares e facilitam a comunicação das lideranças criminosas com o mundo exterior.