Depois de pelo menos cinco anos recluso na casa onde mora, em Olaria, Wilton colocou a velha cadeira de praia na calçada e papeou com a mãe. Elza passeou pelo caminho cercado de árvores do parque Ary Barroso, na Penha. Já Eloísa Helena finalmente pagou a promessa nas escadarias da Igreja da Penha, agora livre dos traficantes. Mais do que um cessar-fogo entre bandidos e policiais, a pacificação dos complexos do Alemão e da Penha, no Rio, representa a retomada de velhos hábitos de moradores do entorno.
Curada de uma doença há um mês, a dona de casa Eloísa Helena Rangel, 27 anos, só conseguiu subir de joelhos os 365 degraus que dão acesso ao santuário na última quinta-feira. Apesar da fé, ela foi obrigada a atrasar o pagamento da promessa por causa da violência no local: "corria risco de vir à igreja no meio do tiroteio. Estou muito emocionada e aproveito para agradecer pelo milagre da paz na Penha".
Segundo o pároco do santuário, padre Serafim Fernandes, 54 anos, o número de pagadores de promessa cresceu. As missas estão mais cheias, muitas celebradas em ação de graças pelo fim da guerra, que devolveu esperança a cerca de 400 mil habitantes de cinco bairros (Ramos, Olaria, Penha, Inhaúma e Bonsucesso) no entorno dos complexos.
Há dois anos, o aposentado Wilton Carvalho, 60 anos, recolhia projéteis que caíam no seu quintal. Hoje, ele sonha em colecionar amigos e boas conversas na rua Vitorino do Amaral. "Suburbano não tem orla e curte o fim de tarde na calçada. Infelizmente, perdemos isso, mas tenho fé de que nossa rotina será retomada", disse.
A aposentada Elza Raquel completa 82 anos neste domingo e, de presente, quer o resgate do Parque Ary Barroso, onde vendeu doces em uma barraca por 25 anos. Uma semana depois da retomada da Vila Cruzeiro pelo Estado, ela voltou ao local. As fotos da família se divertindo no parque já perderam a cor, mas não na memória de Elza. "Fazíamos piquenique, as crianças brincavam na grama e era cheio de famílias. Hoje, está vazio, perigoso", disse.
O Parque Shanghay quase foi vendido em 2007, por causa da violência e da baixa frequência. Com as incursões na Vila Cruzeiro e no Alemão, o administrador do local, Nelson Waller, 52 anos, acredita que valerá a pena ter desistido do negócio: "acredito na mudança. Se o movimento aumentar, vou comprar novos brinquedos".
A empresária Nádia Brigues, 48 anos, lembra que foi a primeira a entrar no restaurante Chopin de Olaria. Nascida e criada no bairro, ela descreve com saudade o tempo em que voltava para casa a pé após passar a noite dançando nos shows do Clube Paranhos. Mas o sentimento, agora, não é de perda, mas de retomada. Na última terça, quando viu policiais almoçando em seu restaurante, quis aplaudir a tropa. "Temos a chance de reviver os tempos de ouro do subúrbio. Estou muito feliz", afirmou.
Natal sem tráfico
Árvore montada, paredes pintadas e cardápio definido. Já está quase tudo pronto na casa de Ângela Maria Silva, 47 anos, na favela da Grota, no Alemão, para receber os parentes no primeiro Natal sem a presença do tráfico. "Vou receber seis pessoas. Este Natal será diferente e feliz", afirmou a dona de casa. Vizinhas dela também enfeitaram as moradias para, pela primeira vez, passar a data em casa, sem precisar ir ao encontro de parentes.
Violência no Rio
O Complexo do Alemão está ocupado pelas forças de segurança desde o dia 28 de novembro. A tomada do local aconteceu praticamente sem resistência numa ação conjunta da Polícia Militar, Civil, Federal e Forças Armadas. A polícia investiga uma possível fuga de traficantes pela tubulação de esgoto do Alemão antes dos policiais subirem o morro. Na quinta, 25 de novembro, a polícia assumiu o comando da Vila Cruzeiro, na Penha. Ambos dominados, até então, pela facção criminosa Comando Vermelho. As ações foram uma resposta do Estado a uma série de ataques, que começou na tarde do dia 21 de novembro. Em uma semana, pelo menos 39 pessoas morreram e mais de 180 veículos foram incendiados por criminosos nas ruas do Rio de Janeiro