Cinco meses de investigação jornalística, mais de 60 pessoas entrevistadas: autoridades, vítimas, aliciadores. A reportagem do Fantástico ficou frente a frente com criminosos que negociam pessoas.
Os repórteres constataram que a exploração sexual é um problema gravíssimo aqui e muito presente na região. Nesse mercado, uma mãe é capaz de vender a própria filha, menor de idade.
A história começa num Brasil esquecido. Baía de Marajó, Pará. Em Portel, uma cidade isolada, a 18 horas de barco de Belém, a capital. Num sobrevoo, não se vê estrada, só a imensidão da floresta e dos rios.
?Você pega um avião pequeno em Belém e viaja 20 minutos e você sai do século 21 e você chega no século 19?, afirma o president da ONG BTO Amazonas, Udo Leibrecht.
É no pequeno município que vive Edina dos Santos Balieiro: uma mulher que oferece a própria a filha para programas. Para chegar até ela, primeiro é preciso falar com os homens que também lucram com esse mercado.
Usando uma câmera escondida, a reportagem do Fantástico foi em busca dos aliciadores que fazem o contato entre os interessados e as famílias. Uma oferta que ocorre livremente nas ruas.
Na tabela da exploração sexual de menores, a noite com uma virgem pode custar R$ 1 mil. Geralmente tudo é feito com conhecimento dos pais.
?Tinha vez que ia as duas para o quarto. Ela com a filha são mesmo que duas molecas. Sai pra sacanagem?, conta um aliciador.
O aliciador é bem próximo das vítimas. ?Eu nasci e me criei aqui. eu conheço a rotina.?
?Eu, eu vou lá. Pra vocês não ficarem andando pra lá e pra cá. Eu vou lá, pego a bicicleta, eu vou lá. Vou bater na casa da mãe dela,vou chamar a mãe dela. Um amigo meu, assim, assim, de São Paulo?, diz.
Dois aliciadores nos levam até Edina, a mãe que vende a filha. Ela é dona de um bar, onde acontece o encontro.
Programa por cerveja
A reportagem simula primeiro interesse num programa com a adolescente de 17 anos. A mãe aceita negociar. Foi uma surpresa descobrir o que ela queria em troca.
?Quer alguma coisa aí??
?Deixa quatro cervejas aí pra mim beber..?
?Quantas??
?Quatro.?
A menina acompanha tudo de perto sem interferir.
?Você acha que eu vou dar minha filha por R$ 10, é ??, diz a mãe, pegando os R$ 10 da mão do suposto cliente. ?É louco, é ??, diz ela enquanto amassa o dinheiro com a mão e guarda.
Apesar do que diz, a mãe fica, sim, com o dinheiro para comprar as cervejas. E a menina chega a entrar num táxi.
O repórter revela então que não vai haver programa. E a jovem é levada de volta pra casa. Cada passo da reportagem foi acompanhado por pessoas ligadas à Igreja Católica.
?Essa mãe precisa responder a um processo. Ela cometeu um crime. A policia precisa apurar isso. Sem o exemplo de que a lei existe as pessoas vão continuar praticando isso dentro da normalidade?, afirma o defensor público Anginaldo Oliveira.
"Lixo"
?Lá, mulher não é uma mercadoria. Lá, mulher é um lixo, porque uma mercadoria vale bem mais. ela tem um valor?, diz uma jovem, sob anonimato.
Ela conhece bem as histórias desse Brasil sem lei. Nasceu e passou a adolescência em Portel. Vítima de estupro aos 13 anos, decidiu denunciar o que se passa na cidade paraense.
?Muitas mães, elas acostumaram com a cultura de lá. E acham que negociando a filha vai ser normal. Eu vejo aquilo lá como a parte de um verdadeiro inferno, de um purgatório, onde a gente é mutilado, destruido e tem que se calar e se redimir por si próprio?, disse.
Mas até onde pode chegar a negociação feita por Edina, mãe da adolescente de 17 anos? A reportagem voltou ao bar no dia seguinte.
?Hoje é que eu tomei as quatro cervejas.?
?Ontem a senhora foi dormir??
?Ontem eu dormi aí eu deixei pra pegar quatro. Hoje que eu bebi.?
Agora, simulamos interesse não apenas num programa --mas em comprar a jovem. Levar embora, para sempre. Primeiro, Edina fala das duas filhas que moram com ela.
?Todas minhas filhas são bonitas.?
?Mas a que a senhora quer me dar...?
?Meu orgulho...?
?É seu orgulho a que a senhora quer me dar??
A mulher faz que sim com a cabeça.
O repórter Francisco Regueira deixa claras suas supostas intenções... levar a moça, e fazer com ela o que quiser.
Antes do acerto, a mãe faz uma única exigência: ?Pode viajar. Pode ir. Ela... só quero um número de telefone pra ligar. Ela me ligar.?
No dia seguinte, Edina fala qual é o preço para entregar a filha.
?Aquela nossa conversa tá de pé, não tá??
?Tá.?
?A senhora falou pra ela e ela falou o que??
?Eu tenho coragem de ir, mamãe.?
?Ela tem coragem??
?Tem. Chega lá, fala: ?Vim te buscar pra gente viajar.??
?Mas quanto? quinhentos, mil, duzentos?
?Ah, não sei... cê que sabe.?
?R$ 500??
?Talvez , né? Tou ouvindo ... cê que sabe.?
Está se perdendo em muitas regiões do Pará e também no Marajó, o respeito, a valorização de uma menina, de um menor, de uma menor. E perdendo esse respeito as bases de uma sociedade estão minadas?, afirma José Luiz Azscon, bispo de Marajó.
Pobreza
A renda média dos moradores de Portel, hoje, está bem abaixo do salário mínimo nacional: R$ 229 por mês, segundo o IBGE. A prefeitura estima que quase 80% dos adultos daqui não têm trabalho fixo.
A pobreza do lugar fica evidente logo nos primeiros contatos com a cidade. As ruas são de terra. as casas de madeira. Nao há rede de esgoto. As oportunidades de emprego são poucas. Os serviços públicos, precários. Os moradores reclamam que foram esquecidos pelo estado. pelos governos. mas será que a pobreza realmente explica tudo?
?Há elementos econômicos. ha elementos de empobrecimento. mas não é so isso. Há uma cultura em torno de estar num meio onde se pode ganhar algum dinheiro com a sexualidade. Porque há um apelo sobre a sexualidade permanente em todos os ambientes.?, diz a deputada Maria do Rosário (PT-RS), relatora da CPI da Exploração Sexual.
A negociação
Na hora de fechar a negociação da compra da jovem, Edina define o preço da filha.
?A senhora acha que quanto fica bom pra senhora??
?Aquilo que cê tinha me falado da outra vez.?
?Quanto??
?O que cê me falou tá bom.?
?Quanto? R$ 500??
?R$ 500 tá bom pra mim.?
?R$ 500, né??
?É.?
O repórter não chega a concretizar o negócio. Diz a Edina que voltaria com o pagamento depois.
A delegada Socorro Maciel diz que a venda de uma filha pela mãe não a surpreende. ?Não me surpreendo porque a gente sabe que acontece. Infelizmente acontece. Não só no Pará. A gente sabe que em todo o brasil acontece isso?, diz.
o destino de meninas compradas, muitas vezes, é ser prostituta em outros países.