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Jovem morto por leoa tinha transtornos mentais e sonhava em ser domador na África

Na manhã de domingo (30), Gerson de Melo Machado, 19 anos, escalou um muro de cerca de seis metros e foi morto pelo animal

Gerson de Melo Machado, 19 anos, foi morto por uma leoa | Foto: Reprodução
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A morte de Gerson de Melo Machado, 19 anos, atacado por uma leoa depois de entrar no recinto do Parque Zoobotânico Arruda Câmara, o Bica, em João Pessoa, trouxe à tona uma vida marcada por abandono, falta de apoio do poder público e falhas no atendimento de saúde mental. Com informações do UOL.

Na manhã de domingo (30, ele escalou um muro de cerca de seis metros e entrou no zoológico sem ser impedido. Testemunhas disseram que o jovem desceu de uma árvore direto para a área onde estava a leoa Leona, sendo atacado logo em seguida. A cena foi vista por vários visitantes, separados por um vidro.

Gerson de Melo foi morto por leoa em João Pessoa | Foto: Reprodução

Infância com muitas rupturas

Quem acompanhou Gerson desde cedo conhecia bem sua história. A conselheira tutelar Verônica Oliveira, que atua em Mangabeira e esteve ao lado dele por quase uma década, relata que o jovem passou por várias situações de vulnerabilidade na infância e juventude.

A mãe, diagnosticada com esquizofrenia, condição que também atingia a avó materna, perdeu a guarda dos cinco filhos. Todos foram encaminhados para adoção, menos Gerson.

“Foi o início de uma luta para que ele tivesse acolhimento”, lembra Verônica. “Em 2017, uma coordenadora chegou a dizer que ninguém iria adotá-lo. Ele foi privado do direito de ter uma família e de receber cuidados adequados.”

A primeira vez que o Conselho Tutelar o atendeu foi aos 10 anos, quando policiais rodoviários o encontraram caminhando sozinho na beira da estrada depois de fugir de um abrigo. “Ele só dizia que queria voltar para Mangabeira, para a mãe. Depois descobrimos que ela já não tinha mais a guarda”, conta a conselheira.

Diagnósticos demoraram a aparecer

Apesar de sinais claros de deficiência intelectual desde cedo, Gerson só recebeu seu primeiro laudo oficial em 2023. O documento, assinado pelo psiquiatra Klecyus dos Reis, aponta suspeita de retardo mental junto a transtorno de conduta, alterações de humor e impulsividade. O médico recomendou tratamento contínuo e acompanhamento por uma equipe multidisciplinar.

“Esse laudo só saiu depois que ele já tinha passado por muita violência e abandono”, lamenta Verônica. Mais tarde, uma decisão judicial também mencionou esquizofrenia, o mesmo transtorno que já afetava outros membros da família.

Ciclo de prisões e falta de acolhimento

Sem um tratamento adequado e com comportamento instável, Gerson acumulou passagens por delegacias desde a adolescência, sempre por ocorrências leves. Ele chegou a ser internado em unidades socioeducativas, onde, segundo Verônica, se sentia melhor por receber remédios e atenção.

Depois de completar 18 anos, continuou sendo detido. “Ele pegava motos na rua, andava e depois deixava na delegacia. Todos aqui sabiam que o problema era de saúde mental, não de polícia”, afirma.

Na semana passada, foi preso após tentar arrombar um caixa eletrônico e jogar pedras em uma viatura. Ele foi levado ao Presídio do Roger e liberado no dia seguinte, após audiência de custódia, sendo encaminhado para atendimento psiquiátrico.

O diretor da unidade, Edmilson Alves, disse que Gerson passou pelo presídio seis vezes desde que atingiu a maioridade. “A maioria dos casos era por danos ou pequenos furtos. Ele precisava de tratamento. A Justiça entendeu que o presídio não era o lugar para ele”, afirmou.

Os últimos dias antes do ataque

No dia seguinte à liberação, Gerson procurou o Conselho Tutelar pedindo ajuda para tirar a carteira de trabalho. “Ele chegou dizendo: ‘Tia Verônica, o pessoal do presídio falou que eu tenho que tirar a carteira, a senhora me ajuda?’”, lembra a conselheira.

Sem casa fixa, costumava dormir na residência da avó materna, que também tinha esquizofrenia. “Ele era inquieto, vivia andando de um lugar para outro”, conta Verônica.

Para ela, a tragédia é reflexo da falta de políticas públicas voltadas para pessoas em sofrimento mental. “Ele precisava de acompanhamento, internação e tratamento. Há um processo sobre ele com mais de 100 páginas, e nunca houve solução. É muito triste vê-lo morrer sem que nenhuma medida efetiva tenha sido tomada.”

A conselheira acredita que o jovem estava em surto quando entrou no zoológico. Ela lembra ainda que ele tinha um sonho repetido: viajar para a África para se tornar domador de leões. “Uma vez, ele foi encontrado no trem de pouso de um avião achando que iria para lá”, contou.

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