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‘Ele só queria proteção’, diz conselheira tutelar que acompanhou jovem morto por leoa

Gerson de Melo Machado, 19, era portador de esquizofrenia e viveu ciclo de abandono, violações e falta de atendimento; conselheira relatou trajetória marcada pela negligência do Estado

Conselheira tutelar Verônica Oliveira, acompanhou Gerson por oito anos | Foto: Reprodução/ TV Meio norte
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Gerson de Melo Machado, 19 anos, atacado por uma leoa após invadir o recinto do Parque Zoobotânico Arruda Câmara, o Bica, em João Pessoa, expôs uma vida marcada por abandono, negligência institucional e sucessivas falhas no atendimento em saúde mental.

A conselheira tutelar Verônica Oliveira, que atua no bairro de Mangabeira e acompanhou Gerson por oito anos, destacou que a história do jovem sempre foi permeada por ausências do Estado. Em entrevista ao jornalista Helder Felipe, da TV Meio Norte, ela descreveu o percurso de violações, abandono e tentativas frustradas de garantir um atendimento adequado.

"foi negligenciado em todos os seus direitos"

O episódio, ocorrido na manhã de domingo (30), revelou a fragilidade de um adolescente que cresceu sem suporte. O jovem escalou um muro de aproximadamente seis metros, entrou no zoológico sem ser abordado e alcançou a jaula da leoa Leona. Testemunhas relataram que ele desceu de uma árvore diretamente para dentro do recinto, sendo atacado imediatamente. A cena chocou dezenas de visitantes, separados apenas por um vidro.

“Eu atendi o Gerson por oito anos. Ele era um menino que foi negligenciado em todos os seus direitos, vem de uma história de muito abandono por parte do poder público”, afirmou. Ela acrescentou ainda que a família também vivia uma situação de vulnerabilidade. “Não digo que ele teve abandono familiar, pois eles também foram abandonados e não tinham condições. Por isso, a mãe perdeu o poder familiar dos filhos, porque ela tem uma esquizofrenia grave."


Ciclo de violações

Segundo Verônica, desde a infância Gerson apresentava sinais nítidos de transtorno mental, mas não recebia acompanhamento especializado. O acesso a diagnóstico e tratamento só veio anos depois — tarde demais para evitar que ele se perdesse dentro do sistema socioeducativo.

“Quando uma criança nitidamente apresenta sinais de adoecimento mental e não tem direito a um laudo para um tratamento correto, aí ele chega na adolescência e só consegue esse laudo após chegar na socioeducação, quando ele já não quer sair de lá”, explicou.

A conselheira relatou que, inicialmente, Gerson desejava morar em um complexo psiquiátrico, por acreditar que encontraria proteção. Porém, ao descobrir que permaneceria em um ambiente fechado e seguro dentro da socioeducação, passou a cometer pequenos delitos apenas para retornar ao local onde recebia medicação e atenção básica.

“Ele começou a cometer delitos para voltar à socioeducação”, contou. “Com 18 anos ele se viu perdido porque não tinha mais como o Conselho Tutelar dar apoio, pois já estava adulto — apesar de que não o abandonamos em nenhum momento.”

Tentativas de encontrar segurança

Com comportamento instável e sem acompanhamento adequado, Gerson acumulou passagens por delegacias desde a adolescência, sempre por infrações de baixo potencial ofensivo. Ele próprio verbalizava que se sentia mais seguro dentro das instituições do que nas ruas.

Na semana anterior ao ataque, ele havia sido preso após tentar arrombar um caixa eletrônico e atirar pedras contra uma viatura. Depois de uma audiência de custódia, foi liberado e orientado a seguir para tratamento psiquiátrico.

“Gerson não tinha capacidade de elaborar nada. Ele simplesmente queria ficar no sistema prisional porque era lá que ele se sentia seguro, porque ele não tinha para onde ir”, disse Verônica.

A conselheira lembrou que estava em casa quando recebeu a ligação de um colega informando sobre o ataque. Gerson havia sido um dos primeiros casos de saúde mental que acompanhou no Conselho, desde 2017.

Fixação por leões desde a infância

O jovem também mantinha desde criança uma forte fixação por leões. A conselheira relatou que, aos 10 anos, ele dizia que seria “domador de leões” e que viajaria para um safári na África. Aos 17, essa obsessão o levou a protagonizar um episódio que demonstra seu adoecimento profundo: ele rompeu a cerca do Aeroporto Castro Pinto, entrou no trem de pouso de um avião e dizia acreditar que chegaria à África, mesmo sem que aquela aeronave tivesse tal destino.

“Ele tinha um grande sonho, desde os 10 anos de idade. Ele dizia que ia para um safári na África porque era domador de leões”, contou. “Ele tinha essa paixão por leões e cavalos. Eu fiquei em choque.”

A conselheira lembrou ainda que lutava para evitar que blogs e páginas locais expusessem o jovem, algo que lhe causava sofrimento.

“Ele, por ter adoecimento mental, aparecia nos blogs locais. Ele não gostava”, relatou.

De acordo com a profissional, no fim, o que Gerson buscava era a sensação de refúgio que nunca encontrou fora das instituições. As ações que o levaram aos sistemas socioeducativo e prisional eram, segundo Verônica, tentativas desesperadas de se sentir protegido.

“Ele queria cuidado, proteção. Por isso insistia em ficar dentro do hospital psiquiátrico, da casa socioeducativa e depois do presídio. Ele só queria proteção.”

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