Uma idosa de 72 anos perdeu a casa onde morava em Teresina após a filha adotiva vender o imóvel por R$ 70 mil e desaparecer com o valor da venda. A mulher de 34 anos fugiu para Minas Gerais depois que a transação foi descoberta. A informação foi divulgada nesta quarta-feira (9) por uma reportagem do Jornal O Globo.
O caso chama atenção pela semelhança com a trama da novela “Vale Tudo”, da TV Globo, em que a personagem Maria de Fátima, interpretada por Bella Campos no remake, vende o apartamento da mãe, papel de Taís Araújo, e foge com o dinheiro.
CASO NÃO FOI DENUNCIADO
Apesar da perda, a vítima decidiu não registrar denúncia criminal contra a filha. Segundo ela, não acredita que tenha havido má-fé por parte da moça, mesmo com o sumiço logo após o ocorrido.
“A idosa tinha deixado a casa para morar com familiares, e a filha pediu que assinasse uma procuração para alugar o espaço. Um tempo depois, foi questionar o novo ocupante sobre uma reforma no local, e ele respondeu que tinha adquirido o imóvel por R$ 70 mil com a jovem”, relata Sara Melo, titular da 1ª Defensoria Pública do Idoso do Piauí, que acompanha o caso.
Inicialmente, a mulher queria processar o novo comprador, mas foi orientada pela defensora a buscar reparação financeira diretamente da filha, já que a transação, embora feita sob confiança, foi legalmente válida. “Vi toda a documentação e de fato a transação foi legal”, reconhece Sara Melo.
GOLPES
O caso não é isolado. De acordo com especialistas, golpes financeiros cometidos por filhos contra os próprios pais são mais comuns do que se imagina, especialmente quando envolvem pessoas idosas. No entanto, os desfechos na Justiça são raros.
À frente da Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa da Terceira Idade (Depati), no Rio de Janeiro, o delegado Mário Luiz da Silva explica que o desvio de bens é o crime sem violência mais registrado contra idosos, geralmente cometido por pessoas próximas.
“Na maioria desses casos, o filho se aproveita de algum declínio físico ou psicológico dos pais idosos para dilapidar o patrimônio. Muitos relutam em denunciar pelo vínculo afetivo”, afirma o delegado.
Casos como o de Geneviève Boghici, viúva do marchand Jean Boghici, exemplificam essa relutância. Em 2022, ela denunciou a filha, Sabine Coll Boghici, após mais de um ano de extorsões que resultaram em perdas de cerca de R$ 5 milhões em dinheiro, além de joias e obras de arte avaliadas em mais de R$ 725 milhões. O golpe envolvia a promessa de um tratamento espiritual para salvar a vida da filha. Geneviève só procurou ajuda após ser mantida refém no próprio apartamento, na Zona Sul do Rio. Sabine foi presa junto com a esposa, Rosa Stanesco Nicolau, conhecida como Mãe Valéria de Oxossi. Posteriormente, cometeu suicídio em 2023.
“Geneviève nunca deixou de nutrir o sentimento de mãe. Após a prisão de Sabine, ela lutou pela liberdade da filha e queria que ela recebesse um atendimento psicológico e psiquiátrico ao seu lado, o que infelizmente não aconteceu”, conta o advogado Ary Brandão de Oliveira.
Segundo especialistas, em muitos casos, as denúncias são feitas não pelos pais, mas por terceiros, como irmãos, amigos ou outros familiares. O advogado Fernando Magri, coordenador da Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal da Escola Paulista de Direito, relata que atendeu recentemente um homem que queria denunciar o irmão por desviar dinheiro do pai doente. No entanto, os próprios pais pediram que o processo não fosse levado adiante.
“Mesmo sabendo do erro, o pai não queria ver os irmãos brigando, nem o filho preso, ainda mais no fim de sua vida. O outro irmão desistiu”, lembra Magri.
Há também tentativas de solução fora da esfera criminal. A advogada Vanessa Paiva, especialista em Direito de Família e Sucessões, conta que em São Paulo, após o desvio de cerca de R$ 300 mil por uma filha que administrava as finanças da mãe viúva, a solução foi classificar o valor como adiantamento de herança, atendendo ao desejo da matriarca de não judicializar o caso.
Fora da esfera penal, filhos que desviam bens ou dinheiro dos pais podem ser responsabilizados civilmente, com pedidos de indenização ou ressarcimento. Também pode haver implicações no processo sucessório, como a deserdação — que deve ser registrada pelo pai ou mãe em vida — ou a declaração de indignidade, que precisa de condenação judicial para que o herdeiro seja excluído.
“O que pode se tentar em vida é indenização e ressarcimento na esfera cível. E na criminal, depende do caso”, explica Vanessa Paiva.
No caso da novela “Vale Tudo”, o ato de Maria de Fátima não seria considerado crime, segundo Magri, pois o imóvel estava em nome da personagem.
“Entende-se que não seria saudável aplicar o Código Penal em uma relação familiar. Nem se a vítima quiser, o Ministério Público pode abrir um processo”, afirma o advogado