ANDRÉ PESSOA
Especial
No próximo ano uma data simbólica vai marcar o calendário da história da liberdade e das garantias individuais no Piauí. No dia 06 de setembro de 2020 vamos celebrar 250 anos da impressionante carta redigida pela escrava negra Esperança Garcia. Mais do que suplicar pela liberdade de viver ao lado do marido e dos filhos, ela denunciou violências e cobrou justiça, uma verdadeira advogada autodidata em pleno século 18.
Para iniciar as comemorações dos 250 anos desse verdadeiro tratado do Direito em terras piauienses, o jornal Meio Norte, outra vez sob a coordenação do diretor de Jornalismo, José Osmando, inova trazendo aos seus leitores um ensaio inédito com modelos e crianças negras da região de Oeiras como uma homenagem à “bela” e ainda desconhecida figura feminina da escrava Esperança Garcia.
Abaixo, como forma de valorizar nossa heroína, além das imagens das modelos no cenário colonial de Oeiras, publicamos o texto original e na íntegra da carta que é considerada a primeira petição de Direito no Piauí.
“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”
Esperança Garcia: O lamento negro pela liberdade
Difícil imaginar o cenário no Piauí em meados de 1770. A mesma sequidão, forte calor, falta d’água e muitas outras mazelas que afligem nossa população nos dias atuais certamente também penalizavam os moradores dessa época. Vivíamos dias de escravidão, que só seria simbolicamente abolida em 13 maio de 1888 com a Lei Áurea assinada pela princesa Isabel, já que ainda hoje existem algumas formas de escravidão.
Vivendo como escrava numa fazenda denominada de Algodões, localizada na imensa área territorial da colonial Oeiras, atual região de Nazaré do Piauí, uma negra escreveu uma improvável e inédita “petição” endereçada ao Governador da Capitania, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. O seu conteúdo, impensável na época, denunciava violências, implorava por justiça e pedia liberdade.
Encontrada durante a década de 1970 no Arquivo Público do Piauí pelo antropólogo e historiador paulista Luiz Mott, essa carta passou a ser um documento de alto valor histórico e cultural. Atualmente em Oeiras, no Centro Cultural Sobrado Major Selemérico, existe uma sala dedicada exclusivamente à memória de Esperança Garcia.
Por mais inusitado que isso possa parecer para o século 18 (uma escrava alfabetizada, que conseguiu redigir uma carta e endereçá-la _à maior autoridade da região), o fato é que a história registra que em 06 de setembro de 1770, Esperança Garcia, negra e com apenas 19 anos, escreveu o célebre texto. Séculos depois, num gesto de reconhecimento, ela recebeu de forma simbólica do Conselho Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PI) o título de primeira mulher advogada do Piauí, a pedido da Comissão da Verdade da Escravidão Negra.
Em janeiro passado o Grupo Meio Norte Comunicação, de forma ousada e inédita, durante a entrega do Prêmio de Inclusão Social em parceria com o Governo do Estado, concedeu Menção Honrosa a Esperança Garcia, pelo histórico papel que ela desenvolveu em defesa da liberdade e da elevação humana, por sua bravura e protagonismo em favor dos direitos da população negra. “Foi o primeiro reconhecimento público do papel de Esperança Garcia, uma forma de resgate do seu legado”, explicou o diretor de Jornalismo, José Osmando.
Ainda mais recente, coisa de algumas semanas atrás, a deputada federal Margarete Coelho (PP), conseguiu aprovar na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, a proposta de um projeto de lei para inserção do nome de Esperança Garcia no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. A iniciativa teve o apoio da deputada carioca Benedita da Silva (PT) que manifestou parecer favorável à ideia. “Garcia teve papel significativo na luta e resistência à escravidão e resgate da dignidade humana”, destacou a parlamentar. O projeto ainda precisa ser votado.
Considerada pela OAB como a primeira advogada do Piauí graça a sua revolucionária carta, Esperança Garcia também foi lembrada, antes de sua prematura morte, pelo articulador cultural paulista (de nascimento) e (piauiense de coração) Joca Oeiras (1947-2017), que uma década atrás sugeriu a Sônia Terra, então secretária de cultura do Piauí, que se fizesse um concurso para escolher um rosto negro para representar a figura feminina de Esperança Garcia, ideia essa formalizada recentemente pelo Conselho Estadual de Cultura do Piauí que realizou o concurso e a figura de Esperança Garcia, através da arte da artista plástica Dora Parente, foi a vencedora.
Agora, para homenagear Esperança Garcia através da luz, aproveitei minha breve passagem pela querida e charmosa cidade de Oeiras para fotografar a beleza da mulher negra da região. Essa é a minha forma de agradecimento, retribuição e prazer ao documentar mulheres e crianças negras tão bem representadas pela heroína Esperança Garcia.
Créditos:
Direção e fotografias: André Pessoa
Modelos: Tamires Aragão, Vanessa Oliveira e Milena Faustina
Crianças: Josilene, Amanda e Vanessa
Produção: Carlos Rubem
Figurinos: Gabriela Reis
Luz: Carmelo Valter
Make UP: Jhordan Smith
Assistente de Fotografia: Carlos Rubem
Making of: Carlos Rubem
Coordenação: Waldelúcio Barbosa
Produção Executiva: Carol Durães
Direção de Jornalismo: José Osmando
Agradecimentos: Boutique Fio de Prata e Trakinagem Teens e Kids