Com mais de 20 mil casos, trânsito faz uma vítima a cada 20 minutos

Diagnóstico: lesão da medula. Efeito: perda parcial dos movimentos dos membros superiores e inferiores

André, Luís e Lêda: vítimas do trânsito nas ruas cariocas | Reprodução
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O primeiro sinal de que algo mais grave havia acontecido veio em segundos. Estirado sobre a calçada, André tenta se levantar, mas não sente as mãos. Instintivamente, procura movimentar as pernas. Elas não respondem. O sentimento de impotência se mistura à ausência de dores. Ele pensa que todo o corpo abaixo do pescoço fora decepado.

Impaciente, grita pelo amigo, que levava na garupa da moto, e pede que aperte suas pernas, seus braços, suas mãos. Quer ter certeza de que eles estão ali. Eles estavam, mas não atendiam mais a qualquer comando do cérebro. Diagnóstico: lesão da medula. Efeito: perda parcial dos movimentos dos membros superiores e inferiores.

André Luiz de Castro tinha apenas 22 anos quando bateu com a sua moto na lateral de um carro, numa rua de Rocha Miranda, em 2005. Estava sem capacete, em alta velocidade e não teve tempo de frear. Na colisão, seu corpo foi lançado a cerca de oito metros. Até o ano passado, o motociclista vivia praticamente trancado dentro de casa. Em depressão, achava que a vida tinha acabado ali. Pensou em suicídio, mas desistiu. Pediu para que a mulher o abandonasse. Ela não aceitou.

O drama vivido por esse ex-motociclista e seus familiares faz parte de uma rotina no Rio. A cada 20 minutos, ocorre um acidente com vítima na cidade. Em 2012, segundo dados dos bombeiros, batemos um recorde trágico dos últimos cinco anos. Foram 22 mil casos de colisões, atropelamentos, capotamentos e quedas de motos. Um aumento de 62% quando comparado com 2007, e tudo isso em plena campanha mundial, lançada pela ONU, pela redução no número de acidentes até 2020.

? Passei sete anos em profunda crise. Para mim, estava tudo acabado. Mas, em 2009, nasceu o meu filho. Ano passado, ele começou a me chamar para sair para brincar numa pracinha perto de casa. Eu não queria aparecer na rua de cadeiras de rodas, mas a insistência dele me sensibilizou. Decidi, então, buscar tratamento ? revela André, que faz reabilitação na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR).

Atropelamentos são 22% dos casos

Na maioria das vezes, os acidentes com vítimas não letais, numa grande metrópole como o Rio, chama pouca atenção, mas eles representam um contingente expressivo de pessoas. Foram 24 mil feridos no ano passado que tiveram que enfrentar as emergências dos hospitais, mesas de cirurgias, dias e meses sem poder trabalhar ou fazer atividades simples do dia a dia. Muitos conviveram com sequelas temporárias, outros tiveram que reaprender a viver por conta das lesões definitivas.

Para entender essa tragédia carioca, O GLOBO começa hoje a série "Mutilados de uma outra guerra". A partir da tabulação dos microdados de mais de 26 mil acidentes ocorridos em dez meses entre 2011 e 2012, o jornal identificou as ruas e avenidas, os dias e as horas de maior incidência de colisões e atropelamentos, além de algumas das características das vítimas.

Os dados revelam que 58% dos acidentes são resultados de colisões, seguido de atropelamentos (22%), quedas de moto (13%), capotamentos (4,7%) e quedas de bicicleta (1,6%). Entre as vítimas, a maioria é de homens (69%). Cerca de 50% dos feridos são os próprios condutores de veículos e motos. Os pedestres e os passageiros traseiros correspondem, cada um, a 19% das vítimas. A faixa etária das vítimas vai de 17 a 35 anos (52%).

Durante 20 dias, a equipe de reportagem foi às principais ruas tentar identificar possíveis causas, entrevistar vítimas e acompanhar o trabalho dos bombeiros. Também ouviu especialistas em trânsito e médicos. Todos apontam o início das operações da Lei Seca como uma medida importante adotada pelo governo estadual, mas reconhecem que ainda há muito a ser feito para inibir as outras ocorrências que não envolvem o consumo de álcool.

No comparativo com 2009, quando a Lei Seca começa, o aumento do número de acidentes na capital é de fato um pouco menor: 22%. Esse crescimento ocorreu em paralelo a uma queda expressiva do número de mortos naquele ano em todo o estado (-13,8%). Mas os índices voltaram a subir a partir de 2010 e mantiveram essa tendência em 2011, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Na capital, foram 679 mortes causadas por acidentes de trânsito em 2010, e 691 no ano seguinte (aumento de 1,7%). O ISP também confirma a tendência de alta dos acidentes sem vítimas fatais.

? A meu ver, o aumento do número total de acidentes, como indica os bombeiros, tem relação com o número de motociclistas envolvidos em acidentes. Muitos não bebem quando pilotam uma moto, porque, se fazem isso, perdem o equilíbrio e caem. Portanto, a Lei Seca não pega esse grupo, mas o dos motoristas de carros. Temos notado queda no número de mortos e feridos entre os motoristas, mas um aumento constante de vítimas motociclistas ? diz o diretor do Hospital Miguel Couto, Luiz Alexandre Essinger.

Coordenador da Lei Seca, o major Marco Andrade, aponta a falta de comprometimento de muitos motoristas e de pedestres com as regras do trânsito com uma das principais causas.

Para ele, o aumento do número de acidentes se explica também pelo crescimento da frota na cidade. Entre 2007 e 2012 foi de 27%. A frota de motos, contudo, apresentou aumento mais expressivo (63%), enquanto a de automóveis um pouco menor (21%).

? Falta uma maior conscientização dos condutores e pedestres, sem dúvida. O número de atropelamentos, por exemplo, sempre chama atenção em relação ao demais. É claro que há atropelamentos por imprudência do motorista, mas existem muitos por conta também da imprudência dos pedestres. A nossa legislação, infelizmente, não pune os pedestres e isso contribui para a manutenção desses índices. Por outro lado, temos visto um crescimento expressivo da frota, especialmente de motos. Isso tudo explica o aumento do número de acidentes. O poder público está fazendo a sua parte, mas a sociedade também precisa se envolver nessa questão ? ressalta Andrade.

Atropelada na calçada

Com o foco das campanhas nos condutores que dirigem depois de beber, os acidentes motivados por imperícia ou imprudência continuam acontecendo. Morador do Centro, Luiz Eduardo Silva, 26 anos, teve apenas alguns segundos para tirar a filha, de apenas 4 anos, da rota de um carro, que acabara de colidir com um ônibus na Avenida Presidente Vargas, no dia 14 de dezembro passado. Eduardo, que estava de bicicleta, salvou a filha, mas foi imprensado pelo carro contra o meio fio. Teve parte da perna direita amputada.

? Quando caí, vi que tinha perdido o meu pé. A minha filha chorava muito me vendo naquela situação. Uma mulher fechou os olhos dela para que não sofresse tanto ? relembra Eduardo.

A violência do trânsito faz vítimas mesmo nas calçadas, espaço reservado para pedestres. Lêda Rúbia Martins, de 34 anos, foi atropelada por um ônibus, em Irajá, no dia 30 de março do ano passado. Ela tinha saído de casa para pegar a filha na escola, mas foi surpreendida por um motorista de ônibus, que perdera a direção do veículo. Presa contra um poste, foi ela quem começou a bater no parabrisa do ônibus para alertar o motorista:

? Acho que o motorista não viu que tinha uma pessoa ali. Eu batia e gritava no vidro. Algumas pessoas na rua também começaram a gritar para que ele tirasse o ônibus. Entrei em desespero quando vi a minha perna. Fui levada para o hospital, onde os médicos tentaram reimplantar. Mas não deu certo.

Roleta-russa em 20 ruas

Um mês após começar a andar de bicicleta por recomendação médica, Manoel Venâncio Filho, de 54 anos, viu que trafegar pela Avenida Brasil não era nada seguro. Numa manhã, um caminhão passou tão perto que uma corrente fixada na lateral do veículo atingiu sua bicicleta. Manoel nada sofreu, mas, inexplicavelmente, manteve a rotina. Todos os dias acordava às 6h e pedalava até o trabalho. Tudo foi interrompido no dia 22 de agosto passado, ao ser atropelado por um ônibus, na altura de Bangu. O impacto no lado esquerdo do corpo foi tão forte que provocou fraturas no ombro, nas costas e uma grave lesão numa das pernas.

No hospital, Manoel foi informado pela equipe médica de que parte da perna esquerda teria que ser amputada. As dores eram tão intensas que ele aprovou imediatamente o procedimento, sem comunicar à família porque não queria que o vissem ?naquela situação?.

? Mesmo quando soube do que aconteceu, o meu filho, de 14 anos, não queria me ver. Achava que eu estava completamente desfigurado. Tirei uma foto do celular para provar que eu já estava melhor ? lembra Manoel, que hoje, em tratamento no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), reconhece ter sido imprudente ao escolher trafegar pela Avenida Brasil.

Avenida Brasil: 12% das ocorrências

De fato, a avenida que corta o município é uma das mais perigosas vias da cidade. Ela faz parte do grupo de 20 ruas do Rio que concentram cerca de 40% dos registros de acidentes, conforme as tabulações feitas pelo GLOBO, com base nos microdados do Corpo de Bombeiros. Entre as mais de 2,3 mil ruas do banco de dados, a Avenida Brasil concentra sozinha 12% das ocorrências (2.097). A Avenida das Américas vem logo em seguida, com 6% (1.000).

? A Brasil tem uma grande extensão (são cerca de 58 quilômetros) e um volume de tráfego muito intenso. Há trechos sem sinalização adequada, com excesso de velocidade e também imprudência de pedestres e motociclistas ? observa Alexandre Rojas, professor da Uerj e especialista em engenharia de tráfego.

Entre todos os acidentes que ocorrem na Avenida Brasil, o percentual de colisões chega a 69% dos casos. Embora muito alto, o índice é menor quando comparado com o registrado nas outras ruas. Na Estrada do Mendanha, em Campo Grande, o percentual desse tipo de acidente chegou 81%. Ou seja, entre as cem ocorrências registradas nessa via, a maioria foi de colisões envolvendo automóveis, motos, caminhões e bicicletas. Com relação aos atropelamentos, as avenidas Presidente Vargas (38%) e Dom Hélder Câmara (34%), e a Estrada dos Bandeirantes (28%) apresentam os maiores percentuais entre os acidentes ocorridos em cada uma das vias.

A Avenida Menezes Cortes, também conhecida como Estrada Grajaú-Jacarepaguá, registrou 91 acidentes com vítimas, dos quais 34% foram de capotamentos, o maior percentual entre as ruas mais perigosas da cidade.

Para entender o que ocorre nessas 20 vias, O GLOBO percorreu esses trechos, ouviu especialistas e moradores. Não foi difícil encontrar um festival de imprudências praticadas por motoristas, pedestres e motociclistas. Na Avenida Pastor Martin Luther King, além do excesso de velocidade, motociclistas trafegam na contramão. Na Avenidas das Américas, mais excesso de velocidade e imprudência. Os pedestres e ciclistas ainda se arriscam andando na pista exclusiva do BRT.

? Acho a Avenida das Américas perigosa. Há muitos acidentes aqui e grande parte deles por conta da falta de atenção dos pedestres ? avalia José Emílio Paiva, de 50 anos, que trabalha no comércio às margens da avenida.

O professor da Coppe/UFRJ Paulo Cezar Ribeiro foi com a equipe do jornal a algumas ruas e identificou problemas. Para ele, o esquema montado pela prefeitura, com a instalação de grades na Presidente Vargas, na altura da Central do Brasil, deveria ser revista, já que muitos pedestres ignoram esses bloqueios. O mesmo tem ocorrido na Avenida Francisco Bicalho.

? Seria necessário rever alguns pontos na Francisco Bicalho. Embaixo da passagem da linha férrea, por exemplo, há um fluxo de pessoas que descem dos ônibus que vêm da Zona Sul pelo Túnel Rebouças. Elas acabam atravessando ali porque estão acostumadas a fazer isso. Será que esse ponto de ônibus não poderia ser mudado? Há ainda uma antiga passarela no nível da Francisco Bicalho. Quem pula as grades pode atravessar a rua porque essa passagem foi mantida ? observa.

Mas há ainda casos de má sinalização e de problemas até mesmo de espaço para os pedestres caminharem. Na Rua Francisco Xavier, na Tijuca, na altura do número 591, a calçada tem menos de 50 centímetros de largura. Como não há espaço para todos, muitos pedestres caminham pela pista dos carros. Já na Estrada dos Bandeirantes, as ciclovias estão ocupadas por postes de luz.

O problema das calçadas estreitas se repete na Avenida Dom Hélder Câmara, onde elas viram estacionamento de veículos. Outro obstáculo é o desnível no asfalto, que provoca quedas de motociclistas e pedestres.

? A Dom Hélder Câmara tem um comércio intenso. Há shoppings, igrejas e escolas, que atraem as pessoas. Por outro lado, é uma importante via de ligação da cidade. Tudo isso, somado à imprudência, resulta num maior número de acidentes ? diz Alexandre Rojas.

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