Lisandra Lanzini tinha 6 anos quando acordou antes da hora e viu pela primeira vez o pai se maquiando no espelho do banheiro, usando roupas de mulher. “É carnaval”, explicou a mãe. A irmã mais nova, Lisiane, nem tem memória do pai usando roupas masculinas.
Hoje, com 33 e 29 anos, as duas catarinenses falam que sempre viram com naturalidade a transexualidade do pai. “Para as outras pessoas, é a Katielly. Mas para nós, sempre será o nosso pai”, diz Lisiane.
Talvez naquele dia nem fosse carnaval, mas Lisandra se lembra dos bailes de São Miguel do Oeste, cidade catarinense onde a família vivia nos anos 80, e de como o pai ficava alegre quando ia a uma tradicional festa em que homens e mulheres invertiam as roupas.
“Para mim sempre foi mais importante vê-lo realizado. Nas vezes em que ele tentou não ser assim, a gente viu que ficou infeliz”, conta Lisandra.
Com o tempo, Katielly colocou silicone, afinou o nariz e fez um tratamento hormonal para ficar mais feminina. Em Chapecó, onde Katielly e a filha mais velha vivem, a família garante que nunca sofreu preconceito. Katielly é uma pessoa bastante conhecida na cidade – escultora, chargista, jornalista e carnavalesca são só algumas das facetas dela.
“Dela”, sim, porque Katielly - que deixou no passado o nome masculino de batismo - se reconhece como mulher, apesar de ter nascido no corpo de um homem. “Mas prefiro que meus filhos me chamem de pai”, observa.
'Gosto de mulher'
Muitas pessoas ainda se espantam quando descobrem que Katielly, apesar da aparência, continua gostando de mulheres.“Eu me considero uma lésbica. Só gosto de mulher e tenho quatro filhos [além das duas mais velhas, Katielly tem mais dois meninos que foram criados pela primeira mulher]. Minha ex sabia de tudo e aceitava numa boa. Minha atual é maravilhosa e me aceita como sou”, diz Katielly, de 54 anos.
Escondida no porão
Nem sempre foi fácil para quem, aos 4 anos, descobriu ser uma menina no corpo de um menino. Da infância no interior do Rio Grande do Sul até se assumir em tempo integral como mulher, a mudança foi gradual. Katielly ainda tem viva a lembrança das madrugadas em que se escondia no porão da casa onde morava na adolescência e se vestia com roupas das irmãs.
“Minha identidade era mais secreta que a do Clark Kent. Eu observava se meus pais estavam dormindo e pulava a janela, às 3h, 4h da manhã. Dava uma ou duas voltas no quarteirão vestida de mulher e voltava. Se visse alguém, pulava o muro e me escondia. E no dia seguinte ia para a escola vestida de menino”, conta Katielly.
A partir de 1992, já em Chapecó, Katielly começou a circular com mais frequência como mulher. “Logo que ele começou foi complicado por causa dos outros, mas não por nós. Minha mãe sempre foi muito parceira, faziam roupas iguais e hoje têm relação de irmãos”, conta Lisandra, que é comunicadora.
“A sociedade não perdoa, mas a roupa que ele usa não muda quem ele é pra mim”, diz a filha mais velha. Lisiane, que hoje é empresária e mora no interior de São Paulo, também diz que a relação do pai com os filhos é a mesma de qualquer família.
“A gente já brigou, já fez as pazes, é supernormal”, conta Lisiane. Ela lembra que, quando as duas eram mais novas, tinham medo de apresentar os namoradinhos para o pai. Não por causa da transexualidade.
“É que o pai achava que ninguém prestava”, diverte-se a filha."O que fiz melhor foi aconselhar. Quem já viveu e já sofreu quer poupar os filhos de qualquer sofrimento", diz Katielly.
A filha mais nova diz que só lamenta uma coisa: “Queria que a gente pudesse usar o mesmo sapato”, brinca Lisiane, sobre os 250 pares que Katielly guarda em casa.
"O amor de pai pra filho e de filho para pai é incondicional. Quando você vê uma pessoa que ama numa condição infeliz, você quer mais é ver ela realizada, de bem com a vida", diz Lisandra."As pessoas que estão de fora imaginam que pode ser diferente, mas são relações normais. Meus filhos nunca me questionaram. O amor de um pai por um filho é uma conquista para vida toda", diz Katielly.