'Tagueamento': como funciona o novo perigo que envolve o uso de palavras

O fenômeno parece com outras coisas que parecem ter voltado no tempo desde que “avançamos” com a tecnologia.

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'Tagueamento': como funciona o novo perigo que envolve o uso de palavras | Imagem: Waldemar Brandt/Unsplash

Esta semana estive em Londres e Paris fazendo conferências e lançando a tradução francesa de meu livro "Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma". Tinha passado pela Inglaterra no fim da pandemia e já dava para sentir que muita coisa havia mudado desde o Brexit, mas agora estas pequenas coisas ficaram mais tangíveis. (As informações são do Blog do Dunker/Christian Dunker)

Movimentos que já foram mais fáceis agora se tornaram novamente complexos. Pagar um táxi com cartão de crédito, entrar e sair de aeroportos, pedir informação no metrô, até mesmo achar uma garrafa de vinho por um preço razoável, tudo ficou um pouco mais trabalhoso desde que o número de pessoas disponíveis para ajudar os não locais diminuiu drasticamente. 

O fenômeno parece com outras coisas que parecem ter voltado no tempo desde que "avançamos" com a tecnologia. Por exemplo, de tempos para cá tornou-se uma aventura achar um filme no streaming, sem que ele esteja na lista dos "recomendados". Ou seja, o mundo parece estar cada vez mais organizado em torno de "tagueamentos" que envolvem usos muito específicos de termos, com sentidos pressupostos muito mais exatos do que poderíamos esperar. 

Essa antecipação de "facilidades que são dificuldades" para os não perfeitamente integrados, leia-se estrangeiros, idosos e outros excluídos digitais, talvez seja um efeito na nova periculosidade que envolve o uso de palavras.

Tagueamento é um conceito-chave para entender a inteligência artificial, a distribuição de posts e o tipo de leitura que os algoritmos farão de seu "consumo de linguagem" para poder oferecer novos segmentos de consumo, de agrupamento ou soluções antecipadas para demandas potenciais.

A atribuição de termos descritivos a textos ou imagens define destinatários, emissores, canais, códigos, nexos e até a poética e a metalinguagem de uma mensagem. O tagueamento também determina quem, como e por que algo será monetizado, além de produzir métricas de resultados e preferências de consumo.

Em termos lacanianos, é como se o significante tivesse triunfado completamente sobre o conceito, mas ao mesmo tempo o discurso tornou-se cada vez mais definido por palavras-chaves. Como se a conversa tivesse se padronizado ao modo dos artigos científicos; classificados por títulos, definidos palavras-chaves, lidos no resumo e resultado, largamente ignorados nos detalhes do texto estendido.

O significante é a imagem acústica e material da palavra, corresponde ao seu termo de uso, na língua específica no interior de um discurso específico. Resulta que o consumidor precisa apenas bater olho no autor, identificar o discurso e escolher um significante para fixar o significado. O significado, por sua vez, reduz-se cada vez mais ao juízo de aprovação ou reprovação.

Por exemplo, quando usamos termos em inglês para nos referirmos a operações complexas não é porque não exista um "similar nacional", que represente o mesmo conceito, mas porque o conceito ele mesmo parece ser menos importante do que a cadeia significante e o discurso onde ele ocorre. Isso ocorre porque parece mais fácil estabelecer regras de ação e antecipações de sentido a partir da palavra (tal qual ela é usada) do que a partir do conceito (tal qual este se apresenta como uma ideia). 

Mas um conceito não é um significado e um significado está longe de ser uma categoria, classe ou "caixinha". Detestamos ser "categorizados", porque isso significa ser integrado a um discurso, ter seu valor definido e sua mensagem pré-definida, geralmente por "categorias" que definem identidades. Por outro lado, adoramos encaixar, agrupar e definir pessoas, que não são como nós.

Este processo há muito conhecido pela psicologia social ganha um novo impulso quando o tagueamento adquire valor de mercado. Um algoritmo, por exemplo, capta e organiza palavras como significantes, não como conceitos, nem como significados. Ele cria um discurso organizado por tagueamentos associativos, em árvore, em série ou em nuvem de ocorrência.

Meu editor francês rejeitou meu livro, famoso no Brasil pela ideia de lógica do condomínio, porque o termo-chave não tinha um bom equivalente em francês. No Brasil, condomínio possui um significado diferente, refletindo segregação, racismo e classe. O discurso sobre segurança e política linguística varia entre países.

Quando me encontrei com os manifestantes que ocupavam a Universidade de Manchester, na luta pela causa Palestina, trouxe um retrato da recepção brasileira do problema e discuti um exemplo, ao qual sempre volto, sobre uma iniciativa da qual participei na Cisjordânia ocupada, perto de Ramallah, onde palestinos e israelenses voltavam a trocar palavras entre si, depois de 40 anos de hostilidades silenciosas, desconfiança e indiferença.

Discutimos o sentido de reparação e de resistência neste contexto, bem como o uso da psicologia e da psicoterapia para adaptar pessoas, resigná-las diante do conflito e reduzir artificialmente a demanda de transformação social, neste caos representado pela urgente necessidade de reconhecer o estado Palestino e conferir cidadania e condições de vida plena a todos os seus habitantes.

Relutantes, testemunharam graves violações nas práticas de acolhimento e suporte psicológico, tanto por organismos internacionais quanto pelas psicologias israelenses a serviço do exército. Percebi que termos como "diálogo", "paz", "genocídio" e "cessar-fogo" estavam fortemente tagueados. "Psicanálise" também era usada pelo inimigo, e "reconhecimento" só podia ser empregado com iniciativa do outro.

O debate aconteceu no dia do mais forte ataque israelense a Rafah, e as barracas que cercavam o campus estavam na iminência de uma invasão da polícia. Aqui novamente a palavra "diálogo" se tornava radioativa. Significava concessão, derrota e continuidade do processo tal como ele se encontra. A geografia do conflito parece prescrever que qualquer negociação, acordo ou pacto representará uma traição de princípios.

O encontro presencial com manifestantes ensinou algo mais. Existe uma complementaridade entre a invisibilidade dos corpos tagueados, que impede a identificação no mundo digital, e a força oposta da personalização visível. A presença física cria um "destagueamento" pela fala em primeira pessoa, conferindo identidade, autenticidade e autoridade ao falante "incorporado", em contraste com a periculosidade e suspeita associadas ao tagueamento anônimo do escritor digital "desincorporado".

O livro "Meia Palavra Basta" (Record, 2024) de Francisco Bosco trata da descompressão narcísica digital por meio de aforismos e máximas, algumas divertidas, irônicas e provocativas. No mesmo dia em que conversei com palestinos acampados, as redes sociais repercutiam Bosco afirmando que Olavo de Carvalho estava certo ao dizer que as universidades brasileiras têm um viés à esquerda. Todos sabem que tive vários embates com Olavo, que chegou a me processar por minhas colunas críticas. A declaração de Bosco é trivial, mas desagradará a todos por infringir quatro regras da gramática do tagueamento.

  1. Nunca saia de seu condomínio discursivo. Se a esquerda crítica Olavo, ele nunca pode ter razão. Ainda que um relógio parado acerte as horas duas vezes jamais e sob nenhuma circunstância reconheça os termos do inimigo.
  2. Ignore momentos irônicos, paródicos e provocativos. Decida por você mesmo o que o outro quis dizer. Se ele não se fez compreender, levantou ambiguidades ou indeterminação de sentido, explore esta brecha para atacar. Nunca reconheça razões usando significantes, conceitos e discursos do inimigo, nem no além-túmulo, nem no post mortem.
  3. Nunca jamais ou em tempo algum sente-se com o inimigo. Se você está entre eles, se sua imagem aparece em contiguidade metonímica com um deles, você se tornou um deles. Se você se senta em uma mesa com dez fascistas, logo são onze fascistas na mesa, simples assim.
  4. Aquele que se coloca entre um e outro será atacado pelos dois. Tagueamentos ambíguos, cruzados ou de mediação são justamente os mais procurados para ataque pois eles situam-se na fronteira da geografia imaginária. E na fronteira se acumula o sentimento de que estamos influenciando mais ainda a decisão das pessoas. Elas sentem que estão participando de um processo maior, de construção ou de combate, quando se colocam como deliberantes, daí que qualquer um que se apresente como juiz qualificado, será reduzido a mais um opinador, diante do qual temos que mobilizar mais uma decisão.



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