De mês em mês, antes da pandemia, a agricultora Joselma Britto saía de casa em São José do Egito (PE) e viajava. Nem se lembra direito para onde foi de tanto lugar que conheceu. Nas redes sociais, as vizinhas viam as fotos das reuniões cheias de mulheres que ela frequentava e comentavam sobre as mudanças.
Como andava cada dia mais bonita, Joselma. Se maquiava bem e o cabelo agora só se mantinha bem arrumado. O comportamento também já era outro. Parecia mais para cima, animada com a vida, cheia de ideias. Com o passar do tempo, a depressão dava uma trégua. A casa foi se enchendo de móveis que ela comprava com o próprio dinheiro. Não precisava mais depender do marido para isso. "Vou te contar uma coisa, eu me sentia e ainda me sinto cada vez mais uma mulher poderosa", relata.
E se antes a vida se resumia aos dias dentro do lar, preocupada com a arrumação da casa, agora divide o tempo entre o trabalho que arrumou como agente de saúde pela manhã e o de agricultora à tarde. Basta o relógio marcar 15h que ela substitui o uniforme do Sistema Único de Saúde (SUS) por roupas apropriadas para passar o resto do dia entre a plantação e a Unidade de Beneficiamento de Fruta do município, onde se reúne com 27 vizinhas.
Juntas formam o grupo Caravana da Esperança, um dos 26 que compõem a Rede Mulheres Produtoras do Pajeú. Ao todo, hoje, o coletivo — que se estabeleceu como associação em 2008 — contabiliza 280 mulheres agricultoras e artesãs espalhadas por 11 municípios de Pernambuco. Para facilitar e fortalecer o trabalho nos territórios, em cada um dos grupos, uma mulher é escolhida como liderança, como é o caso de Joselma.
Articuladas, organizadas e unidas, elas descobriram que os quintais das próprias famílias poderiam transformar a condição de mulheres no meio rural — assim como aconteceu com Joselma.
280 mulheres do sertão do Pajeú (PE) fazem parte da Rede Mulheres Produtoras do Pajeú- Foto: Arquivo
Quintais que dão frutos
A Rede Mulheres Produtoras do Pajeú nasceu em 2005, quando a Casa Mulher do Nordeste, organização feminista do sertão pernambucano fundada na década de 1980, convidou algumas mulheres produtoras para o Festival de Economia Popular e Solidária do Pajeú.
A educadora social Elizabete Ferreira foi uma delas. Está na associação desde o início e é parte integrante do grupo Guerreiras Pernambucanas, que trabalha com agricultura e a produção de sabonetes líquidos de aroeira.
A ideia principal era a de criar uma rede de apoio e de formação política e agroecológica para poder diminuir o isolamento entre mulheres do sertão, além de ser um movimento que olha com mais atenção para questões de gênero na região, principalmente para casos de violência doméstica. Assim, a Rede se estabelece com base em três pilares: agroecologia, feminismo e economia solidária.
Usam os quintais das mulheres sertanejas como ferramenta de transformação de vida e da comunidade delas. Para elas, esses espaços são considerados a porta de entrada para conseguir chegar mais próximo de outras mulheres e conseguir trabalhar com outras questões ligadas aos três pilares da Rede."Os quintais produtivos são uma estratégia de empoderamento feminino. Esse empoderamento também passa pela questão da renda das mulheres. A produção de alimentos a gente enxerga não só como uma questão de colocar comida na mesa ou comercialização dos alimentos. É uma questão de segurança alimentar da família, de troca solidária e de mudanças que acontecem na vida das mulheres," diz a educadora social Ana Cristina Nobre, que faz parte da coordenação da Rede.
Gestoras
As mulheres do Pajeú contam que é comum encontrar mulheres no meio rural que já produzem uma variedade de alimentos em seus quintais para o consumo pessoal. Muitas têm dificuldade de enxergar o potencial daquela atividade como um trabalho que gera renda para a família.
Por isso, um dos principais trabalhos da Rede vem sendo o que elas chamam de Escola de Gestão, que é um curso de capacitação para todos os grupos de mulheres produtoras. Nele, elas aprendem a parte mais técnica de como transformar os alimentos ou artesanatos produzidos em renda. Ao todo é dividido em 11 módulos, em que aprendem como precificar a produção, a vender os alimentos, a buscar espaços e parcerias para a comercialização, e assim por diante.
"A gente ouve das mulheres que elas não têm renda nenhuma. Porque para elas a renda é o que vem de fora: auxílios do governo, o dinheiro que ganham quando fazem faxina? E aí, quando a gente vai mensurar quanto ela teve de produção, quanto o quintal dela pode render, muitas vezes dá muito mais do que o companheiro ganha," diz Apolonia Gomes, educadora social da associação.
Os alimentos produzidos nos quintais dessas mulheres, com o auxílio da Rede, passaram a ir para três destinos diferentes: primeiro para o autoconsumo da família, segundo para a casa de vizinhos, já que é comum a partilha do que produzem, e, por fim, para comercialização.
No caso de Joelma e das meninas do Caravana da Esperança, a produção excedente também é fornecida para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). A Rede ainda conta com um trailer para comercializar os produtos em Afogados de Ingazeira (PE), onde fica a sede da associação, e uma loja van itinerante, que andaria por todos os municípios do sertão do Pajeú, mas por causa da pandemia tem ficado parada temporariamente. Apolonia Gomes, educadora social da Rede Mulheres Produtoras do Pajeú
"Trabalhos da casa não são só função da mulher"
"Hoje eu sei que eu tenho os mesmos direitos que meu esposo, que eu tenho plenos poderes de decidir dentro da minha. casa, tomar atitude sem ter que pedir ao marido. Mas antes não era assim, eu via meu trabalho apenas como uma ajuda, eu falava: 'vou lá ajudar meu marido'. Depois eu aprendi que posso vender o que produzo aqui, que eu posso comprar minhas coisas com o dinheiro do meu trabalho. Porque agora eu sei que é trabalho, viu?"
É esse o relato da agricultora Silvia Ferreira. Ela conheceu a Rede em 2010, quando decidiu se inscrever no curso intitulado "Escola Feminista", promovido pela Casa Mulher do Nordeste no sertão do Pajeú. Desde então não saiu mais, "O orgânico, para nós, é apenas a produção sem veneno. Já o agroecológico é uma produção que integra as relações. Ou seja, se eu produzir sem veneno, mas na minha propriedade eu bater na minha mulher, nos meus filhos, não fazer tarefas na casa? Aquele produto é apenas orgânico, não é agroecológico. A gente vai construindo juntas esses conceitos que fazem com que as mulheres produtoras, aos poucos, enxerguem com outro olhar a realidade delas."
Agricultora responsável pela criação de pequenos animais como cabras, ovelhas e porcos, Silvia vivia uma vida bem diferente de hoje. Antes, a responsabilidade por cuidar da casa era só dela. Conforme passou a frequentar as atividades propostas pela Rede, foi aprendendo mais sobre como melhorar o trabalho no campo e sobre seus direitos. Assim, passou a levar para dentro de casa os ensinamentos que aprendia com as companheiras da Rede Mulheres Produtoras do Pajeú.
"Eu comecei a falar com meu filho e marido sobre ideologia de gênero, ensinando eles que eles tinham que respeitar as pessoas com orientações sexuais diferentes das nossas. Explicava com calma que os trabalhos da casa não são só função da mulher apenas. Abrir novos horizontes em outras pessoas não é fácil, mas com muitas conversas, explicando a função do trabalho produtivo, que é aquele que você faz e é remunerado, e o reprodutivo, que é a limpeza da casa, tudo melhorou. Hoje eles fazem tudo em casa," conta.
Para tentar espalhar todos esses conhecimentos adquiridos entre mulheres produtoras, a associação criou um boletim de notícias, em que compartilham as experiências vividas pelas agricultoras com a agroecologia, troca solidária e feminismo. Denominaram o folheto de "As Fuxiqueiras" porque "é uma rede de fofocas boas, né?", como diz a educadora Ana Cristina.
Com informações do Uol