Armas de choque do tipo que a polícia usa para imobilizar suspeitos a curta distância estão à venda em sites brasileiros sem a autorização do Exército e de modo ilegal, segundo o Ministério Público.
Nossa equipe adquiriu uma pistola de um desses sites, o Loja da Polícia. O vendedor não exigiu nenhum documento, e o equipamento chegou pelo correio, sem nota fiscal ou manual de instruções (a arma será entregue ao Exército para destruição).
O dono da loja nega irregularidades (leia mais sobre o caso abaixo). Nesta segunda-feira (7), uma ação da polícia com apoio do Ministério Público na sede da loja em Bauru (343 km a noroeste de São Paulo) apreendeu mercadorias, entre elas armas de choque. As mercadorias lotaram três carros da polícia. O dono foi levado para a delegacia para prestar esclarecimentos. Segundo um promotor, a loja não tinha autorização para venda da arma de choque.
Esse tipo de arma - que, em tese, não deveria matar - ganhou notoriedade em março, quando provocou duas mortes, uma na Austrália e uma no Brasil.
Atualmente, apenas a duas empresas têm autorização do Exército para vender a arma: a brasileira Condor e a america Taser (nome pelo qual esse tipo de arma ficou conhecido; pronuncia-se "têiser").
O modelo típico dispara dardos energizados a uma distância de cerca de 4,5 metros, a partir da ação de gás comprimido.
A compra da arma
A pistola adquirida por nossa produção custou R$ 438,99 e chegou com o remetente "Lar do Bom Jesus", com endereço em Bauru. Na semana passada, uma pessoa que não quis se identificar confirmou que no endereço do remetente funcionava a Loja da Polícia, mas disse que o responsável não estava.
O site Loja da Polícia está registrado pela empresa Idel Comunicação & Internet Ltda ME, que tem endereço em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. No local indicado como sede da empresa, o repórter conversou com um comerciante que afirmou ser o proprietário do imóvel e morar nele há mais de 20 anos. Esse comerciante diz que, no endereço, nunca funcionou uma empresa.
Segundo a Junta Comercial, o sócio majoritário da Idel é Glennylson Varca. Na semana passada, nossa equipe conversou com ele por telefone. Ele disse que não há restrição do Exército para a compra e uso de armas de choque com lançamento de dardos energizados por pessoas civis. "Ela é liberada. Se não tivesse autorização para vender, nós não fazíamos a venda", afirmou. "Arma de choque não tem nenhuma restrição", acrescentou.
Varca afirmou que usa o nome fantasia "Lar do Bom Jesus" porque sua família é religiosa. "Esse é o nome que usamos porque somos evangélicos", afirmou.
O que diz a lei
O estatuto do desarmamento, de 2003, regulamenta o registro, a posse e a venda de armas de fogo. O estatuto não menciona o termo "arma de choque".
Mas uma portaria do Ministério da Defesa de novembro de 2007 regulamenta o artigo 26 do estatuto, que diz: "São vedadas a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir".
Na regulamentação feita em 2007, o ministério decidiu, em um dos artigos, que "a fabricação de armas de choque elétrico fica condicionada à autorização do Comando do Exército, nos termos do artigo 42 do R-105". Esse artigo diz que apenas polícias e empresas de segurança podem comprar e usar o produto, desde que possuam autorização dos militares.
Em outros artigos, essa regulamentação de 2007 diz que "as armas de choque elétrico fabricadas no país ou importadas serão submetidas a avaliação técnica" e que "as armas de choque elétrico e suas munições não podem ser vendidas no comércio especializado".
Segundo o capitão Marcus Vinícius Bráz Martins, da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Exército, "as pistolas de choque lançam dardos energizados por ação de gás comprimido e por isso são de uso controlado. Não é a intensidade do choque que apontará se ela será restrita ou não, mas o tamanho de seu calibre e o uso de gás". Ele diz que canetas e bastões de choque não têm venda restrita.
Outros sites
Além da venda na Loja da Polícia, o mesmo produto, de duas marcas similares, pode ser encontrado em vários outros sites. A maioria informa telefones de Minas Gerais, São Paulo e Paraíba. Os preços variam entre R$ 300 e R$ 850.
Os produtos são oferecidos como "choque à distância" e informam o usuário de que "o choque recebido pelo alvo será bastante forte, suficiente para imobilizar e neutralizar pessoas e até mesmo animais de grande porte".
?Temos muitos problemas com o comércio de produtos ilegais, em especial com gás lacrimogêneo, que é de uso restrito pelas polícias e algumas pessoas querem comprar para defesa pessoal, mas pode ser mal empregado. O produto aprendido é repassado para o Ministério Público tomar providências criminais?, diz o capitão Marcus Vinícius.
Casos fatais
Neste ano, três casos com mortes provocadas pelo uso da taser repercutiram no país. Em fevereiro, um folião que estaria alcoolizado morreu imobilizado por policiais militares do Tocantins. Em março, um brasileiro foi vítima na Austrália, e um homem que teria usado cocaína morreu após disparo da PM de Santa Catarina.
A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), que distribuiu as pistolas à polícia de Tocantins e Santa Catarina, diz não recomendar o uso em pessoas visivelmente embriagadas ou drogadas, pois o uso de álcool e de outras drogas causa estresse ao organismo e acelera os batimentos cardíacos. "Somado ao estresse causado no corpo pela condutividade elétrica da arma de choque, pode aumentar o risco de lesão ou morte", diz o órgão.
Nesses casos, a Senasp recomenda o uso de armas de menor potencial ofensivo, como o spray de pimenta e, no caso de suspeitos desarmados, "o controle por chave de mão ou imobilização com mãos livres".
Segundo o médico Sergio Timerman, diretor do Comitê de Emergências Vasculares da Sociedade Brasileira de Cardiologia, perícias realizadas em mortos com uso de taser nos Estados Unidos e Canadá confirmaram que, em 80% dos casos em que houve infarto, as vítimas haviam feito uso de álcool e/ou drogas.
"Os estudos internacionais mostram que, quando a pessoa é contida com o uso de disparo de choque, o efeito de álcool e drogas pode ser um gatilho para provocar arritmia cardíaca ou infarto do miocárdio", diz o cardiologista.
Armamento
Pelo menos 12.486 pistolas de eletrochoque estão sendo usadas oficialmente por agentes de segurança no país, segundo dados da Senasp e do Exército.
A Senasp aprovou desde 2008 o uso de 11.440 unidades para as polícias Civil e Militar. Outras 112 foram adquiridas por empresas de vigilância, 485 por órgãos públicos, como tribunais e o Departamento de Trânsito (Detran), e mais 449 por guardas municipais.
As armas de choque são empregadas nas ruas dos Estados Unidos e do Canadá desde 2003, quando começaram a ser fabricadas pela Taser, e ganharam destaque no mercado nacional após o Ministério da Justiça implementar uma política de incentivo ao uso de armas não-letais nos últimos 4 anos, buscando a redução dos homicídios e da letalidade policial.
Os órgãos de segurança possuem hoje no país uma pistola de choque para cada 15.278 habitantes. Considerando só o arsenal em poder de agentes públicos em serviço, há uma arma de fogo para cada 56 habitantes.
Made in Brazil
Desde o final de 2011, uma pistola de choque fabricada pela Condor no país foi homologada e o Exército proibiu a importação da similar da Taser. Em seguida, em dezembro do ano passado, a Taser descredenciou sua representante no país e anunciou que pretende construir uma fábrica no Brasil, buscando atender a demanda nacional e da América Latina.
"O Brasil é um país estratégico no uso de armas menos letais e desde 2003 já vendemos umas 15 unidades da taser ao país. Há a intenção de construir uma fábrica no país e também lançar um equipamento de eletrochoque com tecnologia diferenciada para os órgãos de segurança do país com vistas à Copa do Mundo e às Olímpiadas", diz o diretor da Taser para a América, Del Ruiz.
Treinamento
Guardas, policiais ou seguranças não necessitam de um registro de porte da pistola para andar com ela nas ruas, desde que em serviço. O curso básico tem 16 horas e os alunos passam por uma avaliação sobre o manuseio e a realização de disparo. A decisão sobre como e em quais ações ela será empregada depende de padronização de cada instituição.
?A fabricante não estabelece, recomenda ou endossa qualquer procedimento para o emprego. O treinamento que damos é ilustrativo e será política de cada unidade decidir como usá-la?, explica o policial civil do Rio Grande do Sul Sergio de Mello Risso, que é instrutor desde 2003 do emprego de armas de choque e formou centenas de operadores de taser pelo país.
Del Ruiz diz que a Taser não estabelece normas sobre em quais procedimentos a arma de eletrochoque deve ser usada, "porque há diferenças na adoção de seu emprego em cada país?, diz.