IGOR GIELOW - SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
O governo da Rússia está analisando a proposta feita pelo presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para a criação de um grupo de países não envolvidos na Guerra da Ucrânia para tentar mediar uma saída pacífica para o conflito que completa um ano nesta sexta (24).
A informação foi dada pelo vice-chanceler Mikhail Galuzin em uma entrevista à agência estatal russa Tass nesta quinta. Ele fez ressalvas óbvias à viabilidade da ideia, dizendo ser preciso levar em consideração a evolução militar do conflito.
"Nós notamos as declarações do presidente do Brasil sobre o tema de uma possível mediação para tentar encontrar meios políticos de evitar escalada na Ucrânia, corrigindo erros de cálculo no campo da segurança internacional com base no multilateralismo, e considerando os interesses de todo os atores", afirmou.
"Nós estamos examinando iniciativas, principalmente sob o ponto de vista da política equilibrada do Brasil e, claro, levando em consideração a situação em campo", completou, lembrando que os russos são parceiros dos brasileiros, chineses, indianos e sul-africanos no grupo diplomático Brics.
A proposta de Lula, feita inicialmente ao premiê alemão Olaf Scholz em Brasília e levada ao presidente Joe Biden em Washington, prevê uma tentativa de solução do conflito por meio de um "clube de paz" que inclua países como a Índia e a China.
A ideia, claro, foi recebida de forma morna pelos líderes, que mantêm a posição ocidental de buscar derrotar a Rússia militarmente, o que é considerado impossível mesmo pelo principal general americano, Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Na semana que vem, o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, terá oportunidade de se encontrar com seus colegas russo, chinês e indiano em reunião do G20 em Nova Déli (Índia).
Na primeira encarnação de Lula como presidente, de 2003 a 2010, a política externa foi elevada a prioridade, não menos porque era boa vitrine para o momento econômico favorável pelo qual o país passou, aproveitando o boom das commodities puxado pela China.
A reputação acabou arranhada pelo fracasso do acordo nuclear com o governo do Irã, costurado pelo Brasil e pela Turquia, mas bombardeado pelos EUA, e pelo constante apoio a ditaduras de esquerda próximas do PT.
A situação atual tem nuances complexas, a começar pela posição da China como eventual mediadora. Nesta quinta, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, disse que "quer se encontrar" com os chineses e que gostaria de vê-los nesta posição.
A fala veio em tom de cobrança. Na véspera, o presidente Vladimir Putin encontrou-se com o principal diplomata chinês, Wang Yi, que reforçou a aliança entre os dois países e preparou o caminho para um novo encontro entre o russo e o líder Xi Jinping.
Vinte dias antes da guerra, Putin e Xi selaram a aliança no contexto da Guerra Fria 2.0 e, embora não seja um acordo militar, a cooperação dos dois países cresceu muito, com patrulhas e exercícios conjuntos. Nesta mesma quinta, as Marinhas da China e da Rússia estão em manobras inéditas com a África do Sul, outro membro do Brics aliás.
Os EUA acusam a China de pretender enviar armas para ajudar os russos, o que Pequim nega. Nesta quinta, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, foi na mesma linha: "Nós alertamos contra isso. A China não deve apoiar a guerra ilegal da Rússia, é claro".
Por outro lado, os chineses têm mostrado ambiguidade: não condenam os russos, mas insistem em que a guerra deve parar.
Isso joga dúvidas sobre a validade de um "clube da paz", em especial sem seu ator mais musculoso. Mas também é notável que há uma percepção crescente no Ocidente de que a guerra pode ter unido o bloco de países liderados pelos EUA, mas que outras nações não necessariamente alinhadas à China ou à Rússia têm postura independente.
"Estou muito impressionado com como estamos perdendo a confiança do Sul Global", disse no sábado (18) o presidente francês, Emmanuel Macron, na Conferência de Segurança de Munique, sobre como se comportam na guerra países abarcados pelo termo, como Brasil e Índia.
A deferência russa a Lula é também tributo à posição brasileira na guerra, criticada nos EUA. Gulazin citou até a negativa do petista de vender munição brasileira de tanques Leopard-1 para a Alemanha repassar à Ucrânia, revelada pela Folha em janeiro.
"Eu gostaria de enfatizar que a Rússia valoriza a posição equilibrada do Brasil na atual situação internacional, sua rejeição à medidas de coerção tomadas pelos EUA e seus satélites contra nosso país, e a recusa dos nossos parceiros brasileiros em fornecer armas, equipamento militar ou munição para o regime de Kiev", afirmou.
Na semana passada, uma alta funcionária da diplomacia americana, a subsecretária de Estado Victoria Nuland, disse que o Brasil deveria "se coloca no lugar da Ucrânia". "Ao mesmo tempo, nós vemos como Washington está colocando pressão sobre o Brasil. Tal instância soberana merece respeito", disse Gulazin.
Lula segue a posição do antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que visitou Putin uma semana antes da guerra. Rivais, ambos os políticos mantiveram a tradição do Itamaraty em caso de conflitos internacionais: a busca por soluções pacíficas e distanciamento, procurando preservar seus interesses.
Assim, o Brasil foi 1 dos 141 países que condenaram a invasão russa em votação na ONU, mas recusou-se a adotar o draconiano regime de sanções econômicas liderado pelo Ocidente contra a Rússia. Ficou, desta forma, fora da lista de do Kremlin de países hostis e garantiu seu interesse principal: manter o fornecimento de fertilizantes russos, que dominam 30% do mercado brasileiro.
Bolsonaro também negou ajudar a mesma Alemanha a obter munição para os blindados de defesa antiaérea Gepard, que o Brasil opera, enviados por Berlim a Kiev. Com efeito, antes do segundo turno de 2022 no Brasil, Putin disse à Folha que tinha boas relações tanto com o petista quanto com o então presidente.
Já na campanha eleitoral, Lula causou polêmica ao dizer que Zelenski era tão culpado pela guerra quanto Putin. Presidente, modulou o tom dizendo que a Rússia não deveria ter invadido, mas instou ambos a negociar. Críticos do petista afirmam que a postura brasileira desconsidera a tragédia humana iniciada pela Rússia.