O ator gaúcho Walmor Chagas apareceu nas telas do cinema no final de 2012, no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O longa-metragem A coleção invisível não chamou a atenção nem do público nem da crítica. Ele tampouco foi notado ao ser reprisado num ciclo da Cinemateca Brasileira baseado na obra do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942). Ninguém imaginava, àquela altura, que Walmor, de 82 anos, morreria com um tiro na cabeça no dia 18 de janeiro, em seu sítio em Guaratinguetá, São Paulo, num aparente suicídio. Como Zweig. Poucos sabiam que ele estava em estado de cegueira avançada quando fez o filme e que logo depois ficaria totalmente cego ? como seu personagem em A coleção invisível. Talvez por essa triste coincidência ele tenha aceitado o papel, depois de recusar muitos roteiros.
O diretor Bernard Attal, de 48 anos, francês que mora na Bahia desde 2005, lançará o filme comercialmente neste ano, seu primeiro longa-metragem. Ele antecipava que, de toda forma, Walmor não estaria na pré-estreia. ?Na telona, ele só conseguia ouvir?, afirma. ?Fiz o DVD para ele ver os vultos e as cores, com a cadeira bem perto da televisão.?
O filme se baseia num conto de Stefan Zweig ambientado na Alemanha entre as duas guerras mundiais, que sofria com uma hiperinflação. A história é transposta para a Bahia dos dias de hoje, em que as plantações de cacau sofrem com a praga vassoura-de-bruxa. O protagonista é o colecionador de arte Samir, interpretado por Walmor. O herói do conto de Zweig, Herbert, vive na província da Saxônia. No filme, a história se passa em Itajuípe, sul da Bahia. Lá o filme foi rodado durante seis meses, em 2011. Como no conto original, o colecionador é um sujeito impressionante. ?Ereto, voz ruidosa, mão firme, tinha tudo de um rei de uma peça de Shakespeare?, diz Attal. ?Nas seis semanas de filmagem, Walmor mostrou raiva por sua fragilidade, mas nunca depressão.? Samir espanta um caçador de obras de arte enquanto folheia a coleção que jamais aceitou vender e que conhece de cor, descrevendo pinceladas que só ele ?enxerga?: uma cena em que Walmor interpreta a cegueira que de fato sente. Para saldar dívidas, a família de Samir vende quadros raros ? Rembrandt e Dürer, no conto; Cícero Dias e Lasar Segall no filme ? e mantém telas em branco que o colecionador tateia sem perceber. ?Walmor nos ajudou a entender como se comporta um cego?, diz Attal.
A ideia do filme surgiu por acaso. ?Encontrei o texto de Zweig num sebo e fiquei fascinado pelo tema da mentira e da visão, porque sou devoto de Santa Luzia?, diz Attal. A santa é padroeira dos deficientes visuais. Attal conta que Walmor aceitou o papel por causa de Zweig, que se matou no Brasil e era um de seus autores prediletos. ?Também pesou a ironia de fazer papel de cego no momento em que ele mal enxergava?, diz Attal. Walmor dizia que a cegueira era trágica para quem adorava ler e curtir a vida. ?Quem leu o roteiro para ele foi o filho do caseiro de seu sítio.? A viagem de Attal até o sítio onde Walmor se isolava, no início de 2011, lembra a de Beto, o colecionador do filme, em busca de Samir. ?Eu me perdi por estradas de barro e liguei de um mercadinho no último vilarejo?, diz. ?Não me lembro de ter ficado tão impressionado com alguém como fiquei pela beleza e elegância de Walmor.?
Alto, ombros largos, de chapéu e bermuda colorida, fumando e bebendo vinho português, Walmor também o encantou pela cultura e pelo humor feroz. ?Era meu primeiro filme e era um desafio dirigir uma lenda?, afirma Attal. ?Walmor era generoso com os atores. Encarnou simplesmente o colecionador arruinado e cego.? Na última cena, pediu que Walmor saísse pela porta dos fundos da casa, como a sequência exigia. Walmor, confuso e irritado, reagiu: ?Por que tenho de sair agora? Por que sou velho e preciso ir ao banheiro??. O diretor, calmamente, lhe explicou que o personagem se despedia do filme daquela forma ? e sentiu que Walmor não voltaria a fazer cinema. Triste, nem quis se despedir dele. ?Ainda posso ouvir seu riso alto cortado pela tosse de fumante.?