O teólogo, escritor e professor Leonardo Boff,74, deixou de lado o pessimismo com os rumos da Igreja Católica que marcaram suas análises durante os pontificados de João Paulo 2º e Bento 16. Desde a ascensão de Francisco, o teólogo, que foi membro da Ordem dos Frades Menores, os Franciscanos, passou a cultivar esperança com o futuro da Igreja.
Boff, que nos próximos dias lançará o livro "Francisco de Assis e Francisco de Roma", acredita que o novo pontífice colocará a Igreja ao lado dos pobres, aproximando-se do dos preceitos da Teologia da Libertação, movimento que reformulou a atuação da Igreja na América Latina e do qual Boff é um dos maiores expoentes.
Em entrevista, o teólogo afirmou que Francisco irá, durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro, que começa na próxima segunda-feira (22), "conclamar os governos a escutar as ruas" e indicará "as linhas básicas que darão a tônica de seu pontificado". Ele também revelou que o pontífice tem ligações estreitas com a tendência argentina da Teologia da Libertação.
- Qual é o significado da Jornada Mundial da Juventude para a Igreja Católica?
Leonardo Boff - A intenção originária, de João Paulo 2º e Bento 16, era dar visibilidade à Igreja Católica. Com o processo de secularização, o sagrado na Igreja ficou restrito às imagens. A outra dimensão é de dar mais visibilidade à Igreja e ao cristianismo. O papa Francisco vai ter uma visão mais aberta. Ele coloca o acento não na Igreja, mas nos povos do mundo. Ele enfatiza que Deus é de todos, não só dos católicos.
O papa admite que a Igreja e todos nós estamos confusos sobre o caminho da humanidade, mas temos que cuidar da terra, de um dos outros, caso contrário vamos ao encontro de uma grande catástrofe. Ele procura descobrir como o cristianismo pode ajudar a evitar essa catástrofe.
- Como acha que ele lidará caso haja protestos durante a visita ao Rio?
Leonardo Boff - Ele vai fazer uma conclamação para os governos escutarem as ruas, escutarem os jovens. As causas deles são verdadeiras, e os governos têm de escutá-los. Eles reclamam por mais participação, por uma democracia com o povo. Ele vai desafiar os jovens com seu entusiasmo, seu senso de sonho, utopia. Ele tem uma perspectiva bem diferente do Bento 16, que mantinha um diálogo difícil com a modernidade. Acho que dessa jornada vai ser um desafio para os jovens de inaugurar uma nova fase da Igreja.
- O evento pode influir nos rumos da Igreja, impulsionar reformas?
Leonardo Boff - Antes de iniciar reformas na Cúria Romana, Francisco reformou o próprio papado. Ele é um papa que deixa o palácio, mora onde todos os hóspedes moram, renuncia a títulos de poder, se sente mais Bispo de Roma do que papa e pede para não ser chamado de sua santidade. Com isso, ele quer dizer "nós somos irmãos ou irmãs", "estou no meio de vocês". É uma perspectiva diferente, mais ligada à vida cotidiana dos fieis, à capacidade de perdão e misericórdia. Na Jornada, ele dará as linhas básicas que vão ser a tônica do seu papado. Ele já deu sinais de que defende a abertura de diálogo com judeus e muçulmanos.
- O senhor enxerga no papa Francisco ligação com os pressupostos da Teologia da Libertação?
Leonardo Boff - As intuições básicas da Teologia da Libertação estão presentes no discurso dele. A primeira frase mais forte que ele disse no dia seguinte à eleição, foi de que ele gostaria de uma Igreja pobre para os pobres. E ele era adepto de uma das vertentes da Teologia da Libertação, que era própria da Argentina, que é a teologia do povo, teologia da cultura popular. A Teologia da Libertação tinha muitas tendências. Na Argentina predominou essa, que vem do justicialismo (movimento político de apoio ao Partido Justicialista, de Juan Domingos Perón).
Francisco sempre se entendeu como um peronista, um justicialista. Uma das polêmicas com a Cristina Kirchner (presidente da Argentina, do Partido Justicialista) foi por ele achar que o governo estava tratando o pobre com filantropia, e não com justiça social. Ele defendia trazer os pobres como participantes, que não há solução para os pobres sem a participação deles. Isso é a Teologia da Libertação. Francisco não usa a palavra Teologia da Libertação, e talvez até seja bom ele como papa não se filiar a teologia nenhuma.
- Gostaria que o senhor falasse mais sobre essa tendência argentina da Teologia da Libertação que influenciou o papa.
Leonardo Boff - O formulador dessa teologia é Juan Carlos Scannone, um jesuíta que foi professor do Bergoglio. Ele frequentou as aulas do Scannone e sempre foi entusiasta dessa teologia. Ele foi sozinho para as casas, para as favelas. Não vou dizer que ele é da Teologia da Libertação porque isso não é importante. Mas ele é da libertação. E intuiu essa opção pelos pobres contra a pobreza. É isso que sempre pregamos. E o curioso é que saiu um livro na Itália.
É isso que sempre pregamos. E o curioso é que agora saiu um livro na Itália escrito conjuntamente entre o atual presidente da Congregação da Doutrina da Fé (grupo interno da Igreja que historicamente combatia a Teologia da Libertação), o arcebispo Gerhard Ludwig Müller, e um dos fundadores da Teologia da Libertação, o peruano Gustavo Gutiérrez. O livro se chama "Da parte dos pobres: Teologia da Libertação, Teologia da igreja". Então há uma mudança muito grande.
- Nesse movimento de mudanças, a Igreja incorporou elementos da Teologia da Libertação?
Leonardo Boff - A Teologia da Libertação sempre esteve presente. Uma coisa é a oposição que tinha o Vaticano, que ouvia muito mais os críticos da Teologia. Outra coisa é a Igreja no Brasil e na América Latina, que vem da linha pastoral. O próprio MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) é criação da Igreja da Libertação, nascido de uma sacristia. O PT (Partido dos Trabalhadores) teve como fundadores as igrejas de base. Aqui a Teologia sempre esteve presente. Ocorre que, como era polêmica, tinha uma certa invisibilidade.
A Teologia está viva. Nasce dessa experiência do grito do oprimido no passado, que virou um clamor hoje em dia. A Europa vive situações da Idade Média. Na Espanha, mais de 30% dos jovens estão desempregados. Na Grécia são 67%. Há muita miséria, sofrimento. Há uma globalização da indiferença. Nossa cultura não sabe mais chorar os mortos, as vítimas. Isso incita uma esperança de uma atmosfera nova da Igreja. Ratzinger condenou mais de 500 teólogos do mundo inteiro. Isso não vai ter mais. Até desconfio que ele (Francisco) vai reabilitar muitos teólogos que foram condenados sem nenhum motivo.
- Nesses primeiros meses de pontificado, houve alguma mudança concreta ou foram gestos mais simbólicos?
Leonardo Boff - Houve mudanças muito profundas. Ele não ora mais no palácio pontífice, ele dispensou todos os aparatos do poder, a começar pelo papamóvel. No Rio, ele rejeitou suíte. Quis um quarto onde todos vão se hospedar. Dispensou a cruz de ouro e joias e manteve a cruz de prata. Ele faz a reforma do pontificado. Essa transformação está desmontando os argumentos que estavam minando a Igreja, que viam a Igreja como um castelo cercado de inimigos, em ruínas. Ele não entende a Igreja assim. A entende como um diálogo aberto, franco, com o mundo. Há uma primavera prometida para a Igreja, depois de um inverno rigoroso
- A Jornada pode ajudar a reverter o quadro de diminuição de católicos no Brasil?
Leonardo Boff - Francisco não tem uma perspectiva proselitista. Ele quer diálogo, que as igrejas se reconheçam mutuamente e juntas deem um testemunho da presença de Jesus. Ele acredita que essas igrejas estão a serviço da humanidade, e não delas mesmas. A figura dele, vindo da América Latina, vai reforçar essa democracia. Espero que ele faça um apelo aos políticos que escutem as ruas e que atendam as demandas. Ele disse que as demandas desses jovens são justas e devem ser ouvidas. São demandas ligadas à vida, em nome de uma democracia mais transparente e participativa.
- O senhor acredita que o papa em algum momento irá tocar em temas polêmicos, como a união de pessoas do mesmo sexo, uso de preservativos e aborto?
Leonardo Boff - Até agora ele não abordou. Acho que ele vai ter uma posição mais clássica, a favor da vida, contra o aborto, com críticas às uniões homoafetivas. Só que tem uma diferença: até agora era proibido discutir esses temas. Ele vai tirar a proibição e permitir a discussão. A partir disso, vai tomar medidas mais pastorais. Ele já fez duras críticas a um padre que não quis batizar uma mãe solteira, dizendo que não existe mãe solteira. Existe mãe.