O imbróglio sobre o Campo de Marte, que pode zerar a dívida pública de SP

História longa, a batalha entre a União e a Prefeitura de São Paulo pelo Campo de Marte

O imbróglio sobre o Campo de Marte, que pode zerar a dívida pública de SP | Divulgação
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É uma história longa, a batalha entre a União e a Prefeitura de São Paulo pelo Campo de Marte, aeroporto de 2,1 milhões de m² na zona norte da cidade. O capítulo mais recente da novela é de junho, quando o prefeito Ricardo Nunes propôs ao presidente Jair Bolsonaro que o imóvel seja usado para quitar a dívida pública do município com os cofres federais.

Para o arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, essa negociação aberta já se transformou numa "espécie de ritual que se estabeleceu no cargo", já que "todo prefeito de São Paulo" em algum momento levanta a questão. 

Ele torce pelo desfecho positivo na negociação, desde que a área seja oficializada como da cidade de São Paulo -- avalia "a retomada" do imóvel como algo "inexorável". 

FAB (Força Aérea Brasileira) faz show aéreo no Campo de Marte, em 22 de setembro de 2012Imagem: Rivaldo Gomes/Folhapress 

A disputa judicial teve início em 1958, mas a história do Campo de Marte é bem mais antiga. E toda a briga entre prefeitura e governo federal teve início em um momento particularmente marcante para a história paulista: A Revolução Constitucionalista de 1932. 

O que havia antes? As imensas glebas de terra ao norte da então Vila de São Paulo de Piratininga passaram a ser ocupadas ainda na primeira fase do Brasil Colônia. A área cabia aos jesuítas [religiosos da Companhia de Jesus]. "Eles usavam a área para plantação", conta ao TAB o jornalista e pesquisador Douglas Nascimento, presidente do Instituto São Paulo Antiga. Com a expulsão dos jesuítas de Portugal, em 1759, o terreno na colônia foi confiscado e ficou desocupado — "praticamente deserto", nas palavras de Nascimento. Depois da Proclamação da República, em 1889, houve um processo de reorganização do patrimônio público. A província de São Paulo, à época, passou a considerar então que o terreno, um grande matagal, era área devoluta, que não tinha dono e seria de domínio público. O local foi cedido à cidade.

E o que se fazia ali? Em 1912, o terreno tornou-se picadeiro para a tropa de cavalaria da Força Pública, predecessora da Polícia Militar paulista. Na década seguinte, quando a aviação começava a se tornar algo mais real, foi instalada ali a escola de aviação da própria Força Pública, segundo Nascimento. Em 1929 foi inaugurado, oficialmente, o Aeroporto Campo de Marte, o mais antigo do Brasil -- o também paulistano Congonhas e o carioca Santos Dumont são de 1936. Em tempo: o Campo de Marte, aliás, tem área maior que o aeroporto de Congonhas, na zona sul da capital.

Por que esse nome? Há quem diga que Campo de Marte seja uma referência ao Champ de Mars parisiense -- uma alusão às façanhas, em terras francesas, do brasileiro Alberto Santos Dumont (1873-1932) e seu 14-Bis, em 1906. Contudo, a cronologia da toponímia não permite tal conclusão: conforme pesquisas de Nascimento, o nome Campo de Marte já era utilizado nos anos 1910; antes, portanto, do uso do local como campo de aviação. "Chama-se Campo de Marte por ser o deus da guerra [na mitologia romana], em função do aparato militar que ali funcionava", explica ao TAB o urbanista Caldana. Conforme aponta a historiadora Silvia Maria Tommasini em sua dissertação de mestrado, a relação com Paris está, na verdade, na origem da nomenclatura: ambos bebem na mesma fonte, ou seja, no fato de que Campo de Marte era o "campo de treino militar da Roma Antiga".

Revolucionários pauistanos testam canhão no Campo de Marte, em 1932 Imagem: Folhapress

E o que aconteceu depois? Em 9 de Julho de 1932, um levante armado opôs as forças paulistas às tropas federais -- com a derrota dos primeiros. Ao fim da batalha, com o revés de São Paulo, o governo federal acabou tomando conta do aeroporto. "Foi 'prenda de guerra'", explica ao TAB o historiador Sérgio Marques, tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo. Com o fim do Estado Novo, em 1945, o município começou a negociar junto ao governo federal a devolução do espaço -- em 1958, a questão foi judicializada. "O que começou provavelmente como uma provocação política foi ganhando corpo e virou uma ação judicial quase eterna, que neste momento se encaminha para o desfecho", afirma Caldana.

O assunto nunca se resolveu? Em 2003, o Tribunal Regional Federal decidiu que o imóvel deveria ser, sim, reconhecido como pertencente à União. Cinco anos mais tarde, o Superior Tribunal de Justiça mudou o entendimento, sendo favorável ao município. Em 2011, com a decisão de que o governo federal deveria devolver imediatamente as terras sem uso e ainda pagar indenização pela área utilizada, o caso foi parar no STF -- em 2020, o ministro Celso de Mello rejeitou o recurso e, agora, o caso tramita com Kássio Nunes Marques. Como a dívida pública de São Paulo com a União é de R$ 25 bilhões, o prefeito Ricardo Nunes quer resolver a questão -- com a indenização dos quase 90 anos de uso do imóvel pela União, o saldo devedor seria zerado.

Mas e aí? O terreno voltaria para a prefeitura? Caldana espera que sim. Mais importante, na opinião dele, é o que vai se passar com a área após o desenlace. "Seja em posse da prefeitura, seja da União, a manutenção de um aeroporto ali é praticamente inviável", acredita o urbanista. Ele lembra que, considerando o complexo do Anhembi "mais o Campo de Marte sem a pista, e incluindo os dois cones de aproximação", há terreno suficiente para fazer "pelo menos mais três cidades". "Se a isso for somada uma política pública que gere um bom projeto, bons programas e um instrumento de gestão ágil e colaborativo e uma legislação inteligente, ou menos anacrônica que a atual, o potencial sobe ainda mais", argumenta. "Porém hoje, desativado o aeroporto e vendido o Anhembi, sem visão de curto, médio e longo prazos, vai virar tudo 'predinho na Marginal'. Que venha o campo, sonhemos com Marte."

Fiéis assistem a show durante a 27° edição da Marcha para Jesus, em dezembro de 2019, no Campo de Marte Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Novo Parque Augusta? Douglas Nascimento acredita que, com a retomada da área pela prefeitura, haverá uma mobilização semelhante a ocorrida no terreno do Parque Augusta, na região central da cidade, para que ali "não se construa nada". "É um espaço muito grande, valorizado, em uma região de São Paulo que ficou parada no desenvolvimento. Acredito que haja um grande desejo da prefeitura de retomar essa área para transformar uma parte em parque e acabar vendendo o restante, para criar novos empreendimentos. Construtores devem arrematar em leilão e criar um mini-bairro", aposta ele. "Mas haverá pressão popular muito grande para que [o Campo de Marte] se torne um parque."

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