O piauiense João Maia, de 46 anos, não consegue enxergar, mas isto não impede que exerça a profissão de fotógrafo. Sem o apoio da visão, João conta com seus outros sentidos para fazer os cliques: a audição, o tato, o olfato e o mais importante deles: o coração.
Nascido em Bom Jesus no Piauí e residente em São Paulo desde a adolescência, João ficou cego aos 29 anos por causa de uma uveíte bilateral — doença inflamatória na úvea, que é a camada do olho que abrange a íris, o corpo ciliar e a coroide.
Depois do processo de reabilitação que durou um ano e uma passagem de sete anos pelo esporte paralímpico no atletismo, João decidiu se dedicar totalmente a sua paixão: a fotografia.
Ele trocou a vida de atleta pela vida artística e se destacou em 2016, quando chamou a atenção por ser um fotógrafo cego fazendo a cobertura dos Jogos Paralímpicos no Rio de Janeiro. Ele foi credenciado como fotojornalista de um projeto chamado Superação da produtora cultural Mobgraphia, que consistia em retratar os atletas com fotos de celular.
Sua história foi contada por mais de 30 veículos de imprensa pelo mundo e impulsionou a criação do projeto Fotografia Cega. Hoje, João se dedica não apenas a fotografar, mas também ensina técnicas da fotografia sem o uso da visão e assim "abre os olhos" da sociedade para as capacidades das pessoas com deficiência.
Depois do sucesso em 2016, o fotógrafo visa agora a cobertura das Paralimpíadas em Tóquio, que serão realizadas entre os meses de agosto e setembro, sem a presença dos torcedores por causa das restrições da pandemia.
"Quando eu estiver no Japão fotografando, alguém vai se questionar como uma pessoa cega está fazendo este trabalho. A gente precisa rever nossos valores, a questão da empatia. A pessoa com deficiência tem sua forma de ver o mundo, a minha é através da minha câmera. Eu conto histórias através das minhas imagens", contou à BBC News Brasil.
Desafio em Tóquio
A ida para Tóquio deve impulsionar o novo projeto de João Maia, que consiste na produção de um livro sobre sua história de vida e na obtenção de material para uma nova exposição fotográfica: 4 Sentidos e Uma Visão.
"Vamos usar o material de Tóquio nesta exposição, que terá acessibilidade total, com áudio-descrição, alto-relevo, legendas em braile e letras ampliadas. Queremos ainda escrever este livro da minha trajetória, fazendo mais uma cobertura de Paralimpíada, desta vez do outro lado do mundo", comentou.
João conta com a ajuda da jornalista e escritora Luciane Tonon, que deve guiá-lo em Tóquio, descrever os ambientes e posteriormente, escrever o livro sobre a trajetória dele.
Luciane, que é criadora do portal Guia do Deficiente, conta que conheceu João em um evento teste para as Paralimpíadas em 2016, no Estádio Olímpico Nilton Santos, o "Engenhão" no Rio de Janeiro.
"Eu estava caminhando para a pista quando vi um cadeirante conduzindo um cego e ambos com máquinas fotográficas em mãos. Eu parei na hora, percebi que ali tinha uma história interessante", contou.
Luciane abordou a dupla de fotógrafos e então descobriu que o cego era João Maia. Desde então, os dois iniciaram uma parceria de trabalho e hoje lutam para arrecadar a quantia de que precisam para cobrir as despesas previstas em Tóquio.
As passagens foram financiadas, mas os gastos com alimentação e hospedagem estão pendentes, além da dívida que ficou por causa da passagem.
"Nós fizemos uma vaquinha online, mas então a pandemia começou e acabou nos intimidando na divulgação. Comecei a refletir que muitas pessoas estavam sem renda, arrecadando fundos para combater a fome e nós querendo ir para o Japão", desabafou Luciane.
Mesmo assim, o projeto segue de pé e para João, a ida ao Japão representa um grande passo para mostrar o potencial das pessoas com deficiência, conscientizar a sociedade e trazer inspirações para quem convive com alguma limitação, física ou psicológica.
"Vou ao Japão para, mais uma vez, levantar esta bandeira. Quero empoderar e mostrar que há uma luz no fim do túnel, um caminho a ser traçado para que as pessoas com deficiência possam ter autonomia, segurança e liberdade para serem o que quiserem, para terem oportunidades de se tornar um profissional em qualquer área que desejarem", afirmou.
Diagnóstico e superação
Foi em 2004, que a vida de João começou a mudar drasticamente. Na época, com então 29 anos, ele trabalhava como carteiro em São Paulo, mas começou a ter dificuldades no trabalho por causa da visão.
Na época, ele sofria de miopia e astigmatismo e passou a ter episódios de dificuldade de enxergar, o que resultou em idas frequentes ao oftalmologista, troca de óculos e um diagnóstico errado de glaucoma.
"Uma vez eu desci do ônibus para ir ao trabalho e uma pessoa esbarrou em mim com tanta violência que os meus óculos caíram e eu não os encontrei. Fui ao trabalho naquele dia sem enxergar. Naquela tarde eu ganhei óculos novos, mas tive que trocar dois meses depois. Passei um ano tratando glaucoma", explicou.
A visão de João foi piorando cada vez mais, até não conseguir mais separar as cartas ou enxergar letras pequenas Um tempo depois, já não era mais capaz de ler o letreiro do ônibus ou enxergar qualquer coisa a distância.
"Teve um momento bem difícil em que eu fui passar por um túnel iluminado entre o metrô e o terminal de ônibus. Eu tive que caminhar bem devagarinho para não esbarrar nas pessoas e percebi que o problema era sério. Já não conseguia trabalhar com a mesma agilidade dos outros, então fui ao médico da empresa e ele me afastou. Fui aposentado por invalidez e não voltei mais", contou.
Depois do diagnóstico de uveíte bilateral, João finalmente entendeu a condição que acometeu sua saúde ocular. Ele sofreu uma inflamação de alto grau, teve descolamento da retina e perdeu a visão por completo no olho direito. No esquerdo, sofreu uma lesão do nervo ótico e tem uma visão chamada de "conta dedo". Até 1,20 metro de distância, têm percepções de vultos coloridos.
Quando soube que nunca mais voltaria a enxergar, João conta que passou pelo luto e um processo difícil de aceitação, reabilitação e por fim a compreensão de que podia ir além de sua limitação fisíca e ter autonomia e qualidade de vida.
"Foi muito difícil. Eu tinha baixa visão, pensava que estava enxergando um pouco e não me aceitava como deficiente. Então me dei conta de que não conseguia mais ler, não podia pegar um ônibus ou andar à noite sozinho. Eu tive que me aceitar e começar a usar bengala. Hoje em dia moro sozinho e vivo muito bem graças à tecnologia", reitera.
Vida como fotógrafo
A fotografia veio muito antes da cegueira. Aos 14 anos, o jovem piauiense começou a se interessar, ler e trocar ideias com um amigo cujo pai era fotógrafo. Depois se inspirou em um professor que tinha uma câmera profissional e passou a escrever para empresas do ramo da fotografia, que o presentearam com manuais.
Quando ainda estava em Bom Jesus, João ganhou a primeira câmera de presente de um irmão e passou a fotografar como hobby. Depois foi para São Paulo atrás de oportunidades, ainda na adolescência, seguindo alguns de seus irmãos que já moravam na cidade.
A fotografia esteve presente durante todos os anos em que ainda enxergava e quando retomou o ofício depois de cego, teve que aprender uma nova arte: a arte de fotografar com os outros sentidos.
"Conheço cada botão do meu equipamento e me apoio nos sons da câmera. O barulho me dá certeza de que está sendo focado. Minha fotografia é feita essencialmente com as minhas percepções", explica.
No caso das Paralimpíadas, a passagem que teve pelo esporte como atleta ajuda a entender as provas e João sempre conta com o apoio de algum colega para descrever o ambiente e ajudar nas configurações.
"Quando vou fotografar uma prova de atletismo de 100 metros de velocidade, por exemplo, eu me posiciono na área restrita e peço para a pessoa do meu lado descrever o ambiente. Sei qual atleta quero fotografar e peço que me digam em que raia ele está, então posiciono a câmera", descreve.
Depois de 2019 ficou mais fácil para João fotografar. No Natal daquele ano, ganhou um protótipo de câmera profissional com acessibilidade em uma campanha da Canon. O novo equipamento permitiu que trabalhasse no mesmo nível de um fotógrafo sem deficiência.
"Quando vou bater uma foto na Paralimpíada, sinto a conexão de sons, o disparo da prova, o som da batida do atleta correndo, o som da torcida. Eu transformo toda essa composição de sons em imagens, por isto minha fotografia é cega", conclui.