O caminhão azul passa pela Rua Tocantins, e a névoa de pó se levanta até uma altura a que as moscas não sobem e a que os urubus ? seguindo no céu a trilha em direção ao aterro sanitário ? não descem. Por entre as casas de ripas de madeira, antes mesmo de a nuvem se dissipar, é possível ver a catadora Alda saindo dos fundos do Beco 72, onde mora quase oculta com os três filhos e o marido. Como uma miragem, ela parece não existir, mas está diante dos olhos.
? Ninguém sabe mesmo que eu existo. Disso, eu tenho certeza. Eu não existo, eu consto como nada no mundo ? diz Alda, de 26 anos, moradora do entorno do lixão de Jardim Gramacho, respondendo à pergunta de como se sentia por nunca ter tido uma certidão de nascimento ou qualquer documento de identidade.
Ela, seus três filhos e outras 74 pessoas fazem parte do grupo de catadores locais e familiares que não têm registro no mundo. Alguns já tiveram, mas perderam. Outros ? como a família de Alda Borges ? nunca tiraram.
? Lá em casa, meu marido é o único que tem documento, mas o pessoal só o chama pelo nome daquele bicho: camaleão ? conta Alda.
Órfãos do Poder Público durante anos, eles nunca puderam fazer um crediário, abrir conta no banco ou ter uma matrícula na escola. Agora, com o fim do lixão e a promessa de uma indenização de R$ 14 mil por catador, a identificação virou um item de primeira necessidade.
Morador do Beco da Bosta sem número, o catador Rogério Gonçalves, o Joe, de 35 anos, descansa da ?arada? no lixão e toma um trago, em frente ao Bar do Vizinho, na Tocantins. Faz a ?catação? há 20 anos. Há quatro, não tem documento algum.
? Eu dormi no mundo ? afirma Joe.
Condições adversas
Existe uma lei da natureza pela qual os homens e os urubus dividem a fome e a sede na rampa do aterro sanitário de Jardim Gramacho. Mexem e remexem em papéis sujos, na dureza do aço; espalham o enxofre. Suportam o cheiro do chorume.
Se pudessem, algumas pessoas fugiriam dali. Mas resistem. Sobrevivem. A falta de documentos é um dos obstáculos. Catadora desde os 14 anos, Monique Saraiva de Souza, hoje com 21, e o seu marido, Leandro, cujo sobrenome ela não sabe, nunca tiveram documento algum. A exemplo dos quatro filhos vivos dela e dos outros quatro que já morreram. Nunca tiveram um registro oficial que prova que existem.
? Minha mãe não me registrou por preguiça. Só aos 11 soube qual era o meu nome todo. Cheguei a entrar na escola, mas, ao fim do ano letivo, a diretora teve que me retirar porque eu não tinha documentação ? diz ela. ? Quando eu conheci meu marido pensei: não sou a única azarenta no mundo.