A primeira pergunta não poderia ser outra. Como você está?
KLESTER CAVALCANTI ? Agora está tudo tranquilo. Só estou um pouco chateado porque acabei de ler uma notícia em que o chanceler Antonio Patriota diz que eu fui preso porque não tinha a documentação necessária para atuar na Síria. Ele está equivocado. Eu tirei visto de jornalista quando cheguei em Damasco e o documento era válido por uma semana. Só que desde o começo eles estavam colocando dificuldades para eu ir até Homs. Tentei entrar em Homs pelo Líbano, mas me barraram. Falaram que eu só poderia ir a Homs se fosse primeiro a Damasco. Fui o primeiro jornalista brasileiro a chegar a Homs. Ninguém se dispõe a ir até lá porque é muito arriscado. A primeira coisa que o governo sírio fala quando você chega é dizer que você tem que ir no Ministério da Informação, para colocarem um agente do regime na sua cola. Falam que é para lhe dar segurança, mas na verdade querem te cercear.
Mas você não ratificou seu documento no Ministério da Informação?
CAVALCANTI ? Não. Quando fui solto, na sexta-feira, tive um encontro em Damasco com a diretora de mídia internacional do Ministério da Informação da Síria, Abeer al-Ahmad, e ela me disse que, se eu tivesse ido lá, teriam colocado alguém para me acompanhar até Homs. Falei para ela, então, mandar alguém ir comigo agora. Na mesma hora, ela desconversou. Eu só não pedi a bênção do regime porque aí eles não permitiriam que eu fosse até Homs.
Qual era seu objetivo na Síria?
CAVALCANTI ? Minha missão era ir a Homs para mostrar como está a vida na cidade, se tem universidade funcionando, se tem shopping aberto, essas coisas. Homs é uma cidade grande, tem mais de 1 milhão de habitantes. Achava improvável que a cidade inteira estivesse parada.
Então como foi a ida a Homs?
CAVALCANTI ? Peguei um ônibus em Damasco na tarde do sábado (19). São duas horas de viagem. Cheguei em Homs às 15h. Já na rodoviária passei por uma vistoria da polícia. Revistaram tudo. Eu tinha uma relação do que carregava comigo: filmadora, câmera digital, essas coisas. E tinha um carimbo me autorizando a portar isso. Peguei um táxi para me encontrar com meu contato, que é ativista de direitos humanos lá. Num trecho de menos de 10 quilômetros passei por quatro abordagens militares. Aproveitei para fazer algumas fotos. Havia bairros que pareciam normais. A confusão maior é na região central.
Em que contexto ocorreu sua prisão?
CAVALCANTI ? As forças de segurança nos paravam sempre em tom agressivo. Quando viam que eu era jornalista e estrangeiro, eram mais truculentos ainda e ficavam nervosos. Na última vistoria, já perto do hospital onde meu contato me esperava, acabei preso. Os militares tomaram minha mochila. Liguei na hora para o funcionário da embaixada brasileira em Damasco, falei para tentarem me ajudar. Sabia que ia dar errado. Então, um militar pegou meu celular e botou no bolso. Como eu já tinha feito fotos e vídeos, tirei o cartão de memória da câmera e escondi na caixa do fio dental.
Afinal, por que você foi preso?
CAVALCANTI ? Eles não argumentaram nada. Nunca ninguém me disse que fui preso. Até agora não sei. Não falaram a razão e não me deixaram fazer nenhum telefonema. Em estado de guerra tudo é possível. Fui a Síria sabendo que corria risco.
Você sofreu violência física ou psicológica?
CAVALCANTI ? Quando fui preso, fiquei três horas sendo interrogado num posto de polícia improvisado. A cidade parece um grande quartel. Atrás de mim tinha um cara com um fuzil na minha cabeça. Depois me levaram para uma delegacia. Fui no banco de trás do carro, com dois caras armados. Fiquei no porão da delegacia. Expliquei o que estava fazendo, aí um sujeito escreveu um texto em árabe e queria que eu assinasse. Eu não sabia o que estava escrito e falei que não assinaria. Eles seguraram meus braços e um deles chegou perto de mim com um cigarro, ameaçando furar meu olho se eu não assinasse. Ele queimou meu rosto. Ainda estou com a marca. Acabei assinando o documento, por medo. Passei a noite algemado em um sofá.
Onde você ficou preso?
CAVALCANTI ? No domingo (20), me transferiram para um presídio de Homs. Entrei num caminhão-baú com outros 40 presos sem saber se minha família sabia, se minha revista (a IstoÉ) sabia, se meu país sabia. Fui colocado em uma cela com mais 20 presos.
Como foram os dias na cadeia?
CAVALCANTI ? A polícia levou meus equipamentos, mas me deixou com bloco e caneta. Todo dia entrava e saía gente. Todo dia tinha história. Tinha um cara lá dentro que falava inglês e me ajudou muito. As histórias que eu queria, consegui na prisão. Vi os efeitos sociais e econômicos do conflito. Não tive problema nenhum lá dentro. Dormia e comia no chão, mas fui muito mais bem tratado pelos presos do que pelos policiais.
Quem eram esses detentos?
CAVALCANTI ? Tinha todo tipo de gente. Esse rapaz que virou meu colega tinha uma loja de roupa em Homs, mas ela foi fechada e ele se meteu em contrabando de eletrônicos para fazer dinheiro. Conheci um garoto de 20 anos, universitário, um menino bom, que nunca se meteu em confusão. Um belo dia, explodiram a casa do vizinho dele, mataram seu melhor amigo e sua família, aí ele se revoltou e entrou para o Exército Sírio Livre. Acabou preso.
Você ficou preso também em Damasco?
CAVALCANTI ? Meu visto na Síria venceu na quinta-feira e um dia depois me libertaram. Quando fui solto, estava ilegal. Um policial me levou de Homs a Damasco na sexta-feira e eu fiquei em um hotel, mas com a polícia na minha cola. Estava custodiado.
Como você avalia a atuação do governo brasileiro?
CAVALCANTI ? Eu quero muito agradecer o empenho do Itamaraty. Agradeço por ter sido solto. Soube que até Antonio Patriota ligou para o regime sírio para negociar minha libertação. Voltei a ser um homem livre graças à intervenção do governo. O que eu não aceito é essa declaração do ministro de que eu fui preso por não ter a documentação. Isso é grave. Meu visto tinha uma observação para eu procurar o Ministério da Informação após entrar na Síria. Só que isso era uma recomendação, e não uma lei. Tanto é que eu passei por outras barreiras e não teve problema nenhum. Eu não descumpri lei, apenas deixei de cumprir uma recomendação. O problema foi eu ter ido a Homs.
Se você foi impedido de fazer telefonemas, como souberam da sua prisão?
CAVALCANTI ? Minha volta para São Paulo estava prevista para o dia 23. Eu tinha combinado com a IstoÉ que, se eu não entrasse em contato até essa data, é porque tinha dado problema e eles deviam procurar a embaixada em Damasco.
O Itamaraty disse que você não tinha sofrido maus-tratos, mas sua versão é outra.
CAVALCANTI ? Várias vezes me ameaçaram e apontaram armas para mim.
Você chegou a temer por sua vida?
CAVALCANTI ? Depois que passa a agonia, tudo fica mais tranquilo. Mas foi muito angustiante. Em diversos momentos, tinha quase certeza de que ia morrer.
Você foi à Síria para ver os efeitos da opressão do regime e acabou sendo, de certa forma, vítima dela. Isso acabou enriquecendo seu trabalho?
CAVALCANTI ? O fato de me colocarem em uma cela cheia de gente acabou me dando informações sensacionais para uma reportagem. Eu pude, da prisão, ver o que eu queria ver, saber o que eu queria saber. Eles queriam me impedir de mostrar o que estava acontecendo e me deram histórias.