Vítimas do conflito na Síria vão para atendimento em hospitais do “inimigo”

Equipe da BBC visitou hospital israelense para onde sírios feridos são levados e tratados sob sigilo

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Na maternidade do hospital Rebecca Sieff, na cidade de Safed, no norte de Israel, os partos parecem um milagre menor.

No dia que a equipe da BBC visitou o local, havia ali um recém-nascido que, entre outros bebês, terá, um dia, uma grande história para contar - isso se seus pais decidirem compartilhá-la com ele.

A identificação da criança teve de ser omitido: a publicação de qualquer informação pode lhe trazer sérios riscos quando ela voltar ao vilarejo onde mora, na Síria.

O nome de sua mãe ou qualquer outra informação pessoal que possa identificá-la também não pôde ser divulgado.

A mulher parecia cansada, mas feliz quando nós a conhecemos. Rapidamente, elogiou a bondade da equipe médica israelense que a havia tratado.

Ela já estava em trabalho de parto quando se dirigiu a uma maternidade em seu vilarejo natal na Síria, mas foi informada de que não poderia ser hospitalizada no local.

Preocupado, seu marido sabia que seria possível tratá-la em Israel. O casal, então, começou uma corrida contra o tempo em direção à fronteira entre os dois países.

Ela foi levada a um ponto dentro do território sírio onde pôde ser vista por soldados israelenses patrulhando a cerca que marca a velha linha de cessar-fogo entre os dois países.

Uma ambulância militar a levou, então, para o hospital ? e ali seu parto foi feito a tempo.

Transferência

A cadeia humanitária que possibilitou o parto envolve guias na Síria, paramédicos de fronteira, médicos e enfermeiras em Safed.

Ela foi a 177ª pessoa a cumprir essa jornada, no que já se tornou uma das mais extraordinárias subtramas da agonizante guerra civil no país governado por Bashar al-Assad.

Síria e Israel são arqui-inimigos declarados. Um estado de guerra existe entre os dois países há décadas.

Apesar disso, desde que as primeiras vítimas do conflito na Síria começaram a ser tratadas em hospitais israelenses nove meses atrás, o sistema informal de transferência de pacientes se tornou tão bem-estabelecido que alguns deles já chegam com cartas de referência escritas por médicos sírios a seus homólogos do outro lado da fronteira.

Dramas humanos

Oscar Embon, diretor do Hospital Rebecca Sieff, afirmou que "alguns relacionamentos floresceram entre a equipe médica e nossos pacientes. Muitos deles expressam gratidão e o desejo pela paz entre os dois países".

Os israelenses dizem tratar qualquer um que precise de ajuda. Isso se traduz principalmente por mulheres e crianças, mas também é possível que nesse grupo haja combatentes leais ao presidente da Síria, Bashar al-Assad, ou rebeldes jihadistas que, em outras circunstâncias, atacariam alvos em Israel.

Embon diz que a política de não discriminar entre os doentes e feridos coaduna com o que ele vê como valores de seu país e a ética de sua profissão.

"Não espero que eles se tornem fãs de Israel e embaixadores do nosso país, mas nesse ínterim espero que eles reflitam sobre a experiência deles aqui e sobre o fato de que o governo sírio diz que israelenses e sírios são inimigos", afirmou Embon.

A ajuda de Israel a pacientes sírios esconde interesses políticos, claro ? afinal, esse é o Oriente Médio.

Ainda assim, apenas algumas horas dentro do hospital em Safed já são suficientes para se ter uma ideia do tamanho dos dramas humanos que ocorrem ali.

A maioria dos pacientes, no entanto, não vai dizer uma palavra sobre o tratamento ? eles têm medo do que pode acontecer caso vaze a informação de que foram tratados em Israel, um país "inimigo".

Relações em formação

No epicentro desta cadeia humanitária está um assistente social árabe-israelense que nos pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome, Faris.

Uma de suas missões é acalmar os pacientes que ficam em pânico ao se dar conta de que estão sendo tratados em um Estado inimigo.

Faris organiza o que recebe de instituições de caridade, fornecendo aos pacientes artigos de higiene pessoal e escovas de dente.

E também escuta suas histórias.

A rotina de Faris requer relativa frieza para lidar com situações de descontrole emocional ? imagine ter de explicar a um menino que perdeu a visão em uma explosão que ele nunca verá novamente. Mas com os pacientes sírios, diz ele, a tarefa é ainda pior, uma vez que eles retornam para casa tão logo são tratados.

E após cruzarem a fronteira para o lado sírio, todo o contato entre as partes será perdido em meio à velha inimizade que opõe os dois países e à sanguinolência da guerra civil.

Faris reconhece que não lida bem com despedidas. As partidas doem para ele tanto quanto para quem se vai, confidenciou à BBC.

Ele aparentava cansaço quando nos encontramos, mas diz que dorme bem sabendo que tem a chance de fazer algo bom.

"Quando pessoas vêm para cá por dois meses", disse ele, "uma relação começa a se construir e ganha força com o tempo. Quando eles voltam para casa, a única parte ruim é que se perde o contato, porque a Síria vê Israel como um inimigo."

Com a escalada da miséria da guerra civil na Síria ? e a decadência do sistema de saúde no país ? toda semana Faris e a equipe do hospital de Safer recebem novos pacientes e novos problemas.

Os pacientes tratados, por outro lado, não podem comentar abertamente sobre a ajuda que receberam em Israel, sob pena de correrem risco de vida.

Mas, de alguma forma, a notícia de que a ajuda do lado da fronteira existe em meio à famigerada guerra civil indica que o número de sírios em busca de ajuda deve continuar a aumentar.

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