André Pessoa
ESPECIAL PARA O THERESINA
Sob o céu estrelado do sertão, na próxima quarta-feira, 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente, no anfiteatro da Pedra Furada, interior do Parque Nacional Serra da Capivara, na região Sudeste do Piauí, a história vai iluminar a tela do cinema desvendando a vida de uma das mais conhecidas arqueólogas do Brasil. Niède, o filme, de Tiago Tambelli, conta a epopeia da pesquisadora paulista Niède Guidon, 86 anos, que há quase 5 décadas transformou a sua vida numa luta obstinada pela pesquisa, proteção e desenvolvimento sustentável.
Vai ser, literalmente, uma sessão única na reserva federal, que neste dia completa 40 anos da sua criação, em 5 junho de 1979. O longa-metragem produzido pela B&T Audiovisual, de Teresina, e Lente Viva Filmes, de São Paulo, foi registrado durante quase dois anos na Serra da Capivara e municípios da microrregião e acaba de participar da mostra competitiva do festival internacional de documentários É Tudo Verdade, edição 2019, com sessões com sucesso de público na capital paulista e na cidade do Rio de Janeiro.
O evento no aniversário do Parque será o lançamento oficial do filme no Piauí, em especial para os personagens e seus familiares, convidados, autoridades e moradores da zona de entorno da unidade de conservação.
Em pleno interior do Parque Nacional, onde as pesquisas científicas levaram a descobertas revolucionárias sobre a pré-história brasileira, desvendando o passado, o filme será projetado pelo Cinesolar, que representa o futuro: uma iniciativa socioambiental de cinema com energia solar e que chega nos lugares mais isolados do país. No dia 6 junho, às 19h, o filme será projetado em praça pública para os moradores da cidade de São Raimundo Nonato. A prefeita Carmelita Castro esteve em São Paulo no lançamento da obra e conseguiu viabilizar essa sessão, que será totalmente aberta.
Niède Guidon, a principal personagem e o mito que dá nome à película, deverá ocupar a primeira fila do teatro natural da Pedra Furada, certamente estará cercada por autoridades, pesquisadores, amigos, admiradores e o público em geral, que deseja conferir na tela grande a sua história.
Uma noite de celebração e reencontros
Para a produção do filme Niède, personagens que foram decisivos na caminhada da pesquisadora na região se tornaram protagonistas contando, cada um a seu modo e no seu universo, o dia a dia nas escavações e no convívio com a cientista e sua equipe. Nilson, Chico do Zuzinha, Joãozinho da Borda, Nivaldo e Justino são alguns dos responsáveis pelos trechos mais emocionantes do longa-metragem. Numa das cenas, o diretor Tiago Tambelli reuniu três deles para relembrar causos e estórias.
Cenas lúdicas das crianças do povoado do Sítio do Mocó - que fica ao lado das gigantescas formações rochosas do Parque Nacional -, dançando sob a coordenação da bailarina piauiense Lina do Carmo, tiram lágrimas dos olhos. Lina, que mora na Alemanha e tem carreira consolidada na Europa, veio ao Piauí especialmente para preparar a performance das crianças para a gravação do filme e, ela própria, aparece em alguns trechos interpretando o personagem “Alma Inalterável”.
Outro destaque são as imagens em 16mm e Super 8mm das missões arqueológicas do início da década de 1980, resgatadas em arquivos da Fundação Museu do Homem Americano e outras instituições no Brasil e no exterior. Grande parte das imagens são dos filmes “Terra sem Sombras” e “Toca do Boqueirão da Pedra Furada”, da antropóloga visual Anne-Marie Pessis, uma das principais pesquisadoras da equipe de Guidon e especialista em registros gráficos rupestres.
Nas gravações no Piauí entre 2017 e 2018, Tambelli também usou uma câmera 8mm para fazer imagens específicas da Serra da Capivara, como a chegada das primeiras chuvas depois de meses e meses de seca e detalhes de lugares inacessíveis para grandes equipamentos. Como numa teia de contatos e oportunidades, os filmes 8mm que tinham sido comprados em Nova York e trazidos ao Piauí foram filmados e voltaram para os Estados Unidos para serem revelados na Califórnia, na cidade de Los Angeles, um dos ícones do cinema americano.
Quando a magia do cinema mergulha na pré-história
Fazer cinema no Brasil é uma tarefa complexa, por envolver inúmeras dificuldades e entraves burocráticos, falta de incentivo, apoio e patrocínio, legislação trabalhista, mas principalmente por ser caro, resultado de tantos empecilhos. Quando se pensa numa média produção em plena região semiárida do Nordeste, onde os custos naturalmente são maiores, as dificuldades chegam a inviabilizar muitos projetos, que permanecem como sonhos.
Como uma espécie de desafio, o cineasta paulista Tiago Tambelli, 44 anos, focou na missão de não deixar os seus planos virarem apenas um sonho. Desde o dia em que o seu pai visitou a Serra da Capivara, na década de 1990, e voltou para São Paulo fascinado, contando as maravilhas do Parque piauiense e a fantástica trajetória de uma arqueóloga que trocara a agradável vida em Paris pela escaldante e desconhecida Caatinga, que ele alimentava solitariamente a ideia de levar essa história para as telas do cinema.
Tambelli estudou cinematografia na Escola Internacional de Cinema e TV, de Cuba, e foi aprimorando desde cedo a técnica de superar as dificuldades. De volta ao seu país, começou a filmar e a desenvolver os caminhos para tirar os projetos do papel. Entre os principais títulos, que dirigiu em parceria com outros documentaristas, está “Escolas em Luta” (2018), premiado no Festival de Tiradentes, “20 Centavos” e “Das Almas” (selecionado no festival É Tudo Verdade). Em 2013, recebeu o prêmio de “Melhor Autor em Cinema”, pelo filme “Das Almas”, no Baikal International Film Festival, na Rússia. Em 2014, no coração da Europa, ganhou “Menção Honrosa”, com a mesma obra no Jihlava International Film Festival na República Tcheca.
Atualmente, ele prepara o filme “O Criador de Tudo”, sobre a pesquisa e vida do neurocientista Miguel Nicolelis, e como diretor de fotografia trabalhou com Walter Carvalho, Petra Costa, Isa Grinspum, Roberto Moreira, Susanna Lira, Jeferson De, e Sérgio Machado, reconhecidos diretores de cinema.
Como numa espiral de retribuição, Tiago convidou o carioca e experiente diretor de fotografia, Jacques Cheuiche, para assinar em conjunto com ele a fotografia do filme que, certamente, é a pérola do longa Niède. A luz perfeita, os planos inusitados, os cenários impactantes e o registro das pinturas rupestres, como nunca antes tinham sido documentadas, marcam a produção com resultados significativos no conjunto da obra.
Com muito malabarismo e um apoio fundamental do Governo do Piauí, através do próprio governador Wellington Dias, e uma ação proativa do secretário estadual de Cultura, à época, deputado Fábio Novo, o filme foi viabilizado através da Secretaria Estadual de Cultura. As produtoras piauienses Fátima Guimarães, Bárbara Nepomuceno e Talyta Magno se associaram a um grande número de profissionais de variadas regiões, colaboradores e parceiros, levando o longa-metragem a ser produzido, filmado e finalizado contra todas as estatísticas.
Além dos lançamentos iniciais em São Paulo, Rio de Janeiro e agora na região de São Raimundo Nonato, o filme ainda deverá participar de festivais no Brasil e no exterior nos próximos meses. A grande expectativa, no entanto, é pelo lançamento nas salas de cinema pelo país afora.
Cientistas e mateiros
Para quem nunca se interessou pela pré-história brasileira, o filme Niède, de Tiago Tambelli, faz um verdadeiro mergulho no universo da pesquisa arqueológica no Piauí com personagens especializados no assunto. Um dos mais renomados deles é o pesquisador francês Eric Boeda, coordenador da Missão Arqueológica Franco-Brasileira do Piauí, mantida pelo Governo da França, e que anualmente traz para escavar o solo do Piauí cientistas e estudantes de variados países.
Boeda brilha no filme explicando detalhadamente técnicas, culturas e metodologias de estudo dos vestígios deixados pelas populações milenares. Especialista em cultura lítica, em outras palavras, na produção de ferramentas de pedra lascada ou polida, entre outras peças produzidas pelos indígenas que ocuparam a chamada área arqueológica de São Raimundo Nonato, ele tem presença importante no documentário.
Representando uma leva mais jovem de pesquisadores que se uniu aos esforços da equipe pioneira de Niède nos trabalhos na Serra da Capivara, a geógrafa especializada em arqueologia, Gisele Daltrine Felice, integra-se ao grupo no começo da década de 1990 e no filme faz a ponte entre a ciência e as comunidades locais, explicando a relação de Guidon com os seus mateiros, e como ela lidera, com muita energia e personalidade, uma equipe multidisciplinar de cientistas com especialistas em diferentes áreas.
Falando sério, mas de uma forma espontânea que faz o público do filme gargalhar, a também arqueóloga Silvia Maranca relembra as expedições do passado, quando ela, Niéde e alguns outros poucos pesquisadores se aventuravam de São Paulo até o interior do Piauí, em busca dos vestígios do homem americano. Silvia é uma das mais importantes parceiras de Niède Guidon. Especialista em cerâmica indígena, ela participou de várias missões na Caatinga piauiense, desde a década de 1970.
O jovem e experiente mateiro João Leite e o biólogo e condutor de visitantes do Parque Nacional Serra da Capivara, Waltércio Torres, são os representantes locais das novas gerações que souberam se integrar aos trabalhos na reserva federal, e hoje são, cada um em sua área, profissionais reconhecidos que explicam detalhes da natureza do Parque na película.
Megaprodução na Caatinga
Filmar o longa-metragem Niède, do diretor Tiago Tambelli, em pleno Parque Nacional Serra da Capivara, não foi tarefa fácil. Levar toneladas de equipamentos até os sítios arqueológicos escolhidos como os mais importantes e interessantes, terminou sendo uma das missões quase “impossíveis” para a equipe de produção local. Para filmar as pinturas rupestres, por exemplo, em alguns casos foram montados trilhos para o deslocamento da câmera em lugares distantes, sem acesso para veículos, tudo carregado de mão em mão até chegar na locação.
A equipe de mateiros, guias e motoristas contratados na cidade de São Raimundo Nonato, foi decisiva para o sucesso da empreitada. Experientes ao máximo no ambiente local e com espírito aventureiro, eles não mediam esforços para montar toda a estrutura de equipamento de filmagem, maquinaria pesada e iluminação onde quer que o diretor, fotógrafo ou a roteirista Inês Figueiró determinassem. Destaque total para o “gigante” Luís Totem, que além de ser um dos profissionais mais ativos nas gravações no Piauí e em São Paulo, ainda assina o DIT (Digital Imaging Technician), abreviatura em inglês para o técnico de imagem digital que é o responsável por manter a integridade visual de todo o conteúdo gravado, supervisionando e garantindo a qualidade durante a captação, montagem, finalização e até a correção de cor.
Para que as filmagens fossem viabilizadas em algumas locações distantes, a equipe de produção saía do hotel às 2:30h da madrugada para começar a filmar, depois de horas de deslocamento em veículos 4x4, ao nascer do sol, por volta das 5:30h. Essa rotina se prolongou por cerca de 3 semanas de trabalhos ininterruptos, o que exigiu disposição, compromisso e sobretudo espírito de equipe.
Além do uso de um drone para as imagens aéreas, feitas em diferentes épocas do ano para mostrar as mudanças na vegetação da Caatinga e os desfiladeiros mais impressionantes e inacessíveis da Serra da Capivara. Um caminhão apenas com equipamentos locados em São Paulo foi deslocado para o interior do Piauí, transformando a saga de filmar o longa Niède numa aventura emocionante que agora você poderá conferir confortavelmente sentado numa sala de cinema ou mesmo a céu aberto, com distribuição gratuita de pipoca, como será no lançamento do filme no anfiteatro da Pedra Furada, na próxima quarta-feira, dia 5 de junho.