A travesti Dérica Sousa Aguiar, que preferiu não revelar sua idade, afirma que teve que abandonar os estudos para conseguir conquistar sua independência financeira e, assim, sair de casa e deixar de sofrer violência física e verbal por parte do seu pai.
Ela conta ainda que foi bastante perseguida na escola nos anos 1980 e que na época não se tinha tantas informações sobre bullying e preconceito. Por conta disso, a inserção no mercado de trabalho ficou mais difícil ainda.
“Meu primeiro emprego foi aos 16 anos, em uma metalúrgica. Eu tive que sair de casa, por conta da pressão, principalmente por causa do meu pai que era muito violento. Foi muito difícil, porque as pessoas me condenavam muito, então tive que lutar bastante.
A esposa do meu patrão criava situações para me comprometer, mas como meu pai já tinha me mandado sair de casa eu tinha que passar por tudo aquilo. Papai me dizia que não me queria dentro de casa dormindo, que eu deixasse para dormir quando morresse”, revelou.
Hoje ela trabalha como cabeleireira e conta que foi em busca de qualificação anos depois, quando realizou vários cursos e conquistou certificados. Mas, mesmo assim, nada disso lhe deu garantia para que ela pudesse ter um trabalho com carteira assinada.
“Eu já tinha tentado várias vezes e não conseguia nada, então tive que ir me virar, fui fazer depilações, vender objetos e até trabalhar na rua como profissional do sexo. A sociedade coloca um peso muito grande nas nossas costas”, disse.
Ela lembra que em uma das suas tentativas de conseguir um emprego formal, participou de uma seleção para ocupar o cargo de chefe de limpeza geral de um hospital de Teresina. Dérica conta que passou por todos os testes a que foi submetida, mas na entrevista com a diretora do hospital foi eliminada. Ela encara o episódio como um divisor de águas em sua vida.
Dérica Sousa já foi detida durante uma briga de rua e dentro da cadeia fez um projeto de como tratar um travesti no sistema prisional.
Foi quando surgiu o GPTRANS (Grupo Piauiense de Transexuais e Travestis) que visa promover ações educativas relacionadas a direitos e ao respeito à identidade de gênero. “Eu que criei esse projeto, dei a cara à tapa. Quando fui presa eu tirei como uma experiência, me deu força. As pessoas têm como derrota, mas eu encaro como minha história”, afirmou.
Jovem se qualifica, mas não consegue emprego
Em contrapartida a história de Dérica, Suzane Sousa, 28 anos, terminou os estudos e se formou em auxiliar administrativo. Apaixonada por arte, Suzane diz que sempre teve o apoio da família e aos 17 anos já trabalhava com serviços de tatuagem. Mas apesar de todo preparo e qualificação, nunca teve vínculo empregatício com nenhuma empresa e associa essa dificuldade a sua identidade de gênero.
“Eu venho de uma família que tem a questão do empreendedorismo na veia, isso me proporcionou, desde muito jovem, ter essa visão ampla sobre a questão. Eu gosto muito de arte, desenhos e tatuagem, então montei um estúdio para mim e hoje posso viver disso”, afirmou.
A jovem também passou a se envolver em trabalhos sociais para ajudar na conquista dos direitos de transexuais e travestis, o que possibilitou uma maior capacitação e pode trabalhar como instrutora e educadora social.
“As únicas oportunidades de emprego que tive no mercado de trabalho formal, eu teria que assumir uma condição que não condiz com a minha realidade.
Eu teria que cortar meu cabelo, me trajar com roupas masculinas e para um processo que está em constante transformação que é o da transexualidade é inadmissível que isso aconteça.
Seria um retrocesso, pois nós passamos tanto tempo tentando nos firmar como pessoa do gênero feminino para que tenhamos êxito na vida social, familiar e até na questão do trabalho”, esclareceu Para Suzane, muitas jovens, por não conseguirem uma oportunidade de emprego, acabam virando para o mundo da prostituição, mas ela não julga essa posição já que essa é uma imposição da sociedade que mexe bastante com o seu psicológico.
Preconceito ainda é barreira no mercado de trabalho
Com curso superior de Logística, a secretária executiva do Centro de Referência LGBT da Secretaria de Assistência Social e Cidadania do Estado (Sasc), Maria Laura, 33 anos, aponta que o Piauí ainda encontra muitas barreiras na hora de contratar transexuais e travestis no trabalho formal e, quando conseguem conquistar alguma vaga, essa vem por meio de concursos públicos. Quando isso não acontece, acabam caminhando para o mercado informal e a prostituição.
Com a chegada dessas empresas de telemarketing é que estamos conseguindo empregar algumas, porque não tem tanto essa questão de contato com o público.
Mas trabalhar em um local que tenha atendimento direto, os empregadores não as contratam. É uma realidade ainda muito difícil, nós temos muito o que lutar e conquistar. Estamos caminhando a passos bem lentos, avançamos pouquíssimo na questão do mercado do trabalho formal”, disse.
Exceção à regra, Maria Laura conta que só após terminar o ensino médio passou pelo processo da travestilidade e ao ingressar na faculdade foi bastante respeitada e teve seu nome social inserido na chamada escolar, assim como pôde utilizar o banheiro feminino, mas reconhece que essa ainda é uma realidade distante para a maioria das travestis e transexuais.
“É complicado ainda essa questão de lutar contra a academia e se a gente não consegue se qualificar, não temos como nos inserir no mercado de trabalho formal porque ele está cada vez mais exigente e competitivo. Se você não consegue ter um diploma, se torna algo ainda mais desvantajoso”, considerou.
Segmento deve ter 5% das vagas no emprego formal
A política de reservas de vagas já garante cotas para mulheres, negros, deficientes e agora uma proposta de Lei apresentada pela deputada estadual Flora Izabel, na Assembleia Legislativa, visa garantir 5% das vagas de emprego formal nas empresas que têm isenção fiscal por parte do Governo do Estado.
"O sistema de reserva de vagas para travestis, transexuais e mulheres de transexuais pretende garantir a contratação por empresas privadas que recebem incentivo fiscal do Piauí.
Essa é uma política afirmativa em que defendemos que as pessoas devem ser tratadas de forma igual", afirmou. Ela cita que existe um preconceito contra as pessoas transexuais e travestis, principalmente, no mercado de trabalho formal.
A deputada cita que o projeto já foi lido pela Assembleia e que agora deve passar pela Comissão de Justiça, que vai analisar a constitucionalidade do projeto e depois vai para Comissão de Direitos Humanos.
"O projeto não significa nenhum benefício, simplesmente trata de forma diferente o que são tratados desproporcionalmente diferentes pela sociedade. Eles já são desiguais, agora temos que investir em políticas públicas que tragam a inclusão entre todos", pontuou.
A parlamentar defende ainda que as travestis e transexuais devem se inserir no mercado de trabalho com o seu nome social e que seu projeto de Lei trata da política de exclusão pela equidade com o segmento.
"Esse é outro projeto de Lei feito por mim. Se a travesti ou transexual nasceu se chamando Pedro e agora se chama Sofia, isso deve ser respeitado, tanto para sexo masculino, quanto feminino", ponderou.
Outro embate que a deputada frisa, na luta contra a falta de contratação do público no mercado de trabalho formal, é o receio que os empregadores possuem em contratar essas pessoas e seus clientes não aceitarem o gênero sexual do empregado.
"Muitos travestis vivem na prostituição por conta do preconceito. O empregador ou empresário teme sofrer com não-consentimento do público pois o cliente pode não aprovar a contratação e acaba deixando aquele estabelecimento. Isso deve ser combatido com políticas de inclusão", propôs.
OAB combate preconceito na hora de contratar
Anna Vitória Feijó, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil - seção Piauí (OAB-PI), afirma que a comissão já tem uma perspectiva de projeto de tratar sobre a questão da empregabilidade do segmento de transexuais e travestis no Estado.
Ela disse que será pontuado a questão das leis trabalhistas e espaços de convivência do segmento. "A intenção é trazê-las para o mercado de trabalho formal. É claro que vão ter vários embates, principalmente na questão da escolaridade", avaliou.
"Nós enxergamos duas problemáticas, a primeira pela falta de capacitação. A segunda pela desinformação dos empregadores, pois, nós acreditamos que os empresários têm um receio de contratar as pessoas do segmento, porque não têm informação precisa ou não têm habitualidade de como tratá-las.
Então, têm o receio de surgir algum problema, se eles vão receber um processo pelo jeito que as tratam, se ao invés de ajudar, eles não estão trazendo um problema para si, mas tudo isso é muito fácil de se resolver com informação. Somente assim combateremos o preconceito", declarou.
Ela esclarece ainda que durante o processo de mudança do corpo, elas acabam aprendendo técnicas de maquiagem e cabelo, e por isso seguem no trabalho informal em centros de beleza, reduto doméstico, ou trabalham na noite como profissionais do sexo.
"As transexuais e as travestis começam a vivenciar o preconceito desde muito novas, pois a primeira fase é a homossexualidade. Porém, com o tempo elas começam a entender que não é só a questão da atração, mas elas querem também se identificar para a sociedade.
Dessa forma, o preconceito aparece mais forte, elas começam a vivenciar a sua identidade de gênero e a sociedade começa a reagir com mais fervor, porque o homossexual consegue disfarçar mais sua orientação sexual, já a travesti não. Por isso, começam a sumir dos espaços públicos, deixam de ir à escola, à faculdade e aos centros de treinamentos", declarou.
Para Anna Feijó, o preconceito existe até mesmo entre o próprio público LGBT e a comissão trabalha não apenas a questão da homofobia, mas também a transfobia, que é o preconceito específico contra as travestis e transexuais.
Fotos: Luiz Fernando Gonzaga e Kelson Fontinele