Exposição à malária aumenta o risco de anemia em menores de dois anos

O estudo foi realizado na região do Acre que concentra a maior parte dos casos de malária no Brasil

malaria | Reprodução
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André Julião | Agência FAPESP – Estudo realizado com 1.539 crianças do município de Cruzeiro do Sul, situado na região do Acre que concentra a maior parte dos casos de malária no Brasil, constatou que os bebês estão relativamente protegidos da doença durante o primeiro ano de vida. Após esse período, porém, os casos de infecção aumentam e tornam as crianças mais suscetíveis à anemia, condição que pode comprometer o desenvolvimento infantil.

“A anemia nos primeiros dois anos de vida ocorre justamente no período crítico de desenvolvimento neurológico. A deficiência de ferro, principal causa de anemia na infância, tem um impacto irreversível para o desenvolvimento infantil. Consequentemente, impacta também o capital humano e a saúde dos futuros adolescentes e adultos dessas localidades endêmicas”, comenta Marly Augusto Cardoso, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e coordenadora da pesquisa.

A investigação foi conduzida no âmbito do “Estudo MINA – materno-infantil no Acre: coorte de nascimentos da Amazônia ocidental brasileira”, que é apoiado pela FAPESP. Os resultados foram publicados nesta quinta-feira (15/07), na revista PLOS Neglected Tropical Diseases.

Conclusão foi publicada por pesquisadores da USP na revista PLOS Neglected Tropical Diseases. Grupo acompanhou 1.539 crianças do município de Cruzeiro do Sul, situado na região do Acre que concentra 18% das infecções por Plasmodium no Brasil (a pesquisadora Marly Cardoso entrevista voluntários; foto: Cecília Bastos/USP imagens)

“Trata-se do primeiro estudo de base populacional de uma coorte [conjunto de pessoas que têm em comum um evento que se deu no mesmo período] de nascimentos na Amazônia ocidental brasileira. A proposta é identificar determinantes da saúde materno-infantil nos primeiros mil dias de vida da criança. Além dos problemas que encontramos em outras regiões do Brasil e outros países de baixa e média renda, Cruzeiro do Sul tem o fator adicional de ser uma área endêmica de malária. Por isso investigamos também a ocorrência dessa e de outras doenças infecciosas tropicais, como dengue e chikungunya”, conta Cardoso.

O município de 89 mil habitantes, próximo à fronteira com o Peru e distante cerca de 700 quilômetros da capital Rio Branco, é o quarto no Brasil com maior incidência de malária por mil habitantes. A região em que se encontra, o Vale do Juruá, responde por 18% dos casos da doença no país. O estudo acompanhou, entre 2015 e 2018, mais de mil crianças do nascimento até os dois anos de idade. A anemia foi detectada em 12,6% das 860 crianças testadas para concentração de hemoglobina no sangue aos dois anos de idade. Nenhuma foi diagnosticada com anemia severa, mas acredita-se que essa porcentagem seja maior nas áreas rurais que não foram alcançadas pelo estudo.

Trabalhos anteriores do grupo mostram uma alta ocorrência (40%) de anemia no parto. O problema, bastante presente no Brasil, é agravado nas mulheres que apresentam malária no início na gravidez e normalmente se estende para os filhos.

Segundo os pesquisadores, a menor prevalência de malária no primeiro ano de vida pode estar associada com a transferência de anticorpos maternos ao longo da gestação. No entanto, no estudo, foram avaliados apenas os anticorpos totais em mães e crianças e, portanto, ainda não é possível saber se eles têm capacidade de realmente inibir a infecção pelo parasita.

Cuidados maiores com os bebês no primeiro ano de vida, como o uso de mosquiteiros e a menor circulação fora de casa, onde ocorre a maior parte das transmissões, são a principal hipótese para a menor prevalência da doença durante o primeiro ano de vida da população estudada.

Exposição recorrente

Mosquito transmissor da malária- Foto: ReproduçãoUma minoria dos participantes teve malária diagnosticada no curso do estudo (7,1%). No entanto, mais de 40% dos casos registrados correspondem a um grupo de crianças que teve quatro ou mais episódios ao longo dos dois anos. Isso pode ocorrer porque o parasita mais prevalente na América do Sul, o Plasmodium vivax, pode permanecer dormente no fígado humano por meses, causando várias recaídas da doença com uma única inoculação pela picada de mosquitos.

“Vimos que a maioria das crianças fica livre de malária nos primeiros mil dias de vida, mas as infectadas são muito afetadas, com episódios recorrentes da doença. Houve crianças com até nove episódios nos primeiros dois anos de vida, o que tem relação direta com anemia e outros fatores que comprometem o desenvolvimento infantil”, explica Anaclara Pincelli, primeira autora do artigo e doutoranda no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP).

Pincelli é orientada por Marcelo Urbano Ferreira, professor no ICB-USP apoiado pela FAPESP e coautor do artigo. No mestrado, ela havia investigado a prevalência de malária e de anemia nas mães das crianças participantes do estudo durante a gravidez e o parto .

A doutoranda ressalta que só foram considerados casos de malária clínica, aquela diagnosticada e tratada. Casos assintomáticos da doença, cujos efeitos ainda são pouco conhecidos, podem também estar exercendo alguma pressão na saúde da população, mas não foram avaliados.

Além disso, foram considerados apenas pacientes das áreas urbana e periurbana do município, que podiam ser contatados durante os dois anos de estudo. Moradores da zona rural, área com maior incidência de malária e menos acesso a serviços públicos de saúde, sabidamente respondem por mais casos do que a população urbana.

“O efeito da doença provavelmente é muito mais grave do que conseguimos demonstrar”, diz Pincelli.

Os autores ressaltam a urgente necessidade de estratégias para prevenção da malária durante os primeiros mil dias de vida da criança em regiões endêmicas. As medidas devem incluir o uso profilático semanal de antimaláricos após o tratamento da doença na gravidez e a realização de testes periódicos durante o pré-natal, ambas medidas preconizadas pelo Ministério da Saúde, além dos cuidados recomendados nos primeiros anos de vida.

Em 2021, o projeto foi expandido para verificar a ocorrência da COVID-19 nas crianças do estudo, agora com cinco anos de idade. Resultados preliminares das primeiras 700 testadas, ainda não publicados, apontam que pelo menos 40% têm anticorpos totais para o SARS-CoV-2, indicando que tiveram contato com o novo coronavírus.

Com essa nova fase do estudo, os pesquisadores terão ainda mais subsídios para guiar políticas de saúde pública nessa e em outras regiões endêmicas para doenças tropicais, além de poder entender melhor a relação dessas enfermidades com a COVID-19.

O artigo pode ser lido na íntegra aqui.

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