Edarlane de Ayrá recebeu uma missão desde jovem. Com o dom da espiritualidade, a menina com mediunidade aguçada percebeu ainda na mais tenra infância o poder de Olurum e das forças da natureza. Sobrinha de Oscar de Oxalá, assassinado em 2014, Edarlane transformou uma tragédia familiar em força para tocar o Terreiro do Cajado de Prata, como a mais jovem iyalorixá do Piauí.
Aos 27 anos, hoje ela ocupa o cargo que muitas pessoas conhecem como “mãe de santo”. Com uma grande responsabilidade que já havia lhe sido apontada criança, Edarlane precisou assumir precocemente a missão de ser uma líder religiosa de uma das mais tradicionais casas de candomblé do Brasil e a primeira de Teresina.
Paralela à vida espiritual, Edarlane de Ayrá formou em fisioterapia. O título foi obtido em uma conhecida faculdade da capital. No entanto, o trabalho da iyalorixá no candomblé vai para além do ofício de um médico ou de uma equipe multidisciplinar de saúde. É um trabalho espiritual que resgata esperanças e curar dores através da regência dos orixás.
Com uma palavra progressista, em tom ameno e firme ao mesmo tempo, Edarlane pede mais que tolerância religiosa: ela pede respeito religioso. Partindo da premissa de que ninguém precisa ser tolerado, mas sim dignificado pelas próprias escolhas espirituais, a iyalorixá denuncia um mundo repleto de mazelas do preconceito, além do desrespeito à natureza e recursos naturais.
Para NOSSA GENTE, Edarlane fala sobre a responsabilidade e a honra de ocupar, tão nova, uma posição tão importante dentro do Candomblé.
Jornal Meio Norte: Qual o sentimento, o impacto, de ser a iyalorixá (mãe de santo) mais jovem do Piauí?
Edarlane de Ayrá: O primeiro impacto foi o de não esperar. Eu não esperava o acontecimento. Oscar de Oxalá foi um grande líder religioso de Teresina, que foi assassinado. Tudo aconteceu em meio a um momento trágico para nós da religião. A forma que ele foi morto fez o mundo desabar na minha cabeça. Todos da casa sabiam que eu sucederia ele, pois fui apontada. Ele me deu o cargo em vida. Mas não sabíamos de nada, Olurum que escreveu nosso destino. Hoje estou como a sucessora dele para dar continuidade. Estou como iyalorixá, que é um cargo que exige da pessoa um campo espiritual muito amplo. Nós que somos zeladores e sacerdotisas estamos além da liderança religiosa. Tanto somos um médico como um psicólogo, advogado, juiz. Somos um todo. A base do candomblé é a hierarquia e o respeito. Então, essa forma de ter que chegar a este compromisso, fez com que eu tivesse que abdicar de várias coisas. Mas isso para estar a frente e fazer o melhor. Apesar de não ser uma missão fácil, sou feliz.
JMN: Você sempre foi fortemente ligada ao candomblé?
EA: Desde muito nova, quando me entendo por gente, sempre frequentei a religião. Meu tio (Oscar de Oxalá) via minha evolução espiritual. Ele sempre costumava dizer que eu era evoluída espiritualmente. Tanto que minha primeira incorporação foi aos meus 12 anos. Ele vendo esse desenvolvimento, com meus 13 anos ele assentou meu orixá. Isso pelo fato dele vir, ele descer, incorporar, de forma precoce e antecipada. Nós sabemos que no candomblé a mediunidade é uma particularidade de cada um. A minha sempre foi aguçado. Para incorporar é preciso fazer um procedimento, uma iniciação. Quando bolei [primeiro contato do abiã com o sagrado], você renasce espiritualmente. Bolei aos 12, fui assentada aos 13. Cada pessoa tem seu orixá na cabeça. Mas minha iniciação foi somente em 2011.
JMN: Por quê?
EA: Porque exige toda uma preparação. Eu era muito jovem. Você passa 16 dias preso, se guardando, aí tem a saída. Eu demorei para fazer por conta de escola. Eu era muito jovem, então ele preferiu que eu priorizasse os estudos. Ele dizia que eu precisava estar a frente com o espiritual, mas também com o intelecto. Ele me queria formada e eu hoje sou fisioterapeuta, tenho formação. Tem três anos. Só não estou exercendo atualmente porque tenho que cuidar e zelar do axé. Tive que abdicar de certos compromissos.
JMN: Como funcionam os seus atendimentos?
EA: Sempre batem pessoas buscando. No começo não foi fácil porque com a morte dele os clientes pensavam que não ia continuar. Mas de pouquinho estou fazendo o trabalho como ele me ensinou. Atendo terça, quarta e quinta-feira. Guardo a segunda e a sexta-feira, que são sagrados.
JMN: Por que esses dias são sagrados?
EA: A gente que é de axé precisa cuidar de exu, que é a abertura de caminhos. Muitas pessoas, por falta de conhecimento, chamam exu de demônio. Mas exu é um orixá de abertura de caminhos. Não existe demônio no panteão africano. Sem exu não existe nada. Por exemplo, é ele que permite que eu possa me comunicar com você [aponta para o repórter]. Ele é responsável, inclusive, pela sexualidade das pessoas. Ele é de suma importância dentro de uma casa de candomblé. Sem ele não há caminhos, até porque ele é o guardião do axé. Nós cuidamos e zelamos por exu, que é um processo restrito, onde nós preparamos o padê, que é uma farofa que pode ser de azeite, de mel ou de água. É como se fosse uma pessoa normal, mas de forma espiritual.
JMN: E quem sãos frequentadores de um terreiro de candomblé?
EA: Tem os filhos de santo. Pessoas que tem curiosidade, com receio. Mas recebo muita gente que quer ser cuidado espiritualmente. A casa de candomblé é diferente da casa de umbanda. Na umbanda tem todos os dias. Aqui temos correntes de exu, xangô e oxalá, que é o dono da casa. E de caboclo, que é distinto de orixá. Nós cuidamos dos caboclos porque eles são brasileiros. O caboclo é bom porque ele conversa, atende, faz passe e dão tiro uma vez no mês para fazer reunião. As pessoas vêm a partir das 20h. Eles dançam, brincam, fazem limpeza espiritual. Eles fazem com que haja movimento e ligação.
JMN: Começamos 2019 com algumas tragédias. Qual seu entendimento sobre isso, enquanto iyalorixá?
EA: 2019 é ano de Ogum, que é o próprio caminho. Com ele vem exu. O que percebo é que vivemos consequências a falta de cuidado do homem com a natureza. Termina sendo uma consequência. Se cada pessoa se posicionasse em seu lugar e pensasse no próximo não aconteceria isso.
JMN: O que a senhora achou da carta do Ministro da Educação pedindo para que os alunos repetissem o slogan da campanha de Bolsonaro: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos? É ofensivo? Como iyalorixá você percebe que vivemos um mundo mais arredio às religiões de raízes afro?
AE: Sim. Mas isso não vem de agora. Vem dos primórdios. Costumo dizer que a intolerância em mascarada de racismo. A perseguição com o povo de axé vem da colonização. Os fundamentos foram trazidos debaixo de preconceito. Dizem que aqui é laico, mas laico da onde? Como você está em uma escola que é obrigado a rezar? Saber o pai nosso? Por que não tinha o pai de santo e o evangélico também? É tudo centrado no cristianismo. Hoje vendo isso percebo que estamos regredindo o que evoluímos. A melhoria do Brasil não vem de autoritarismo, vem de educação e saneamento básico. O campo religioso vem de berço. Não escolhemos, somos escolhidos.
JMN: O que podemos esperar para o Piauí?
AE: A tecnologia vai ter um avanço. A economia também. Vai ser gradativo. Vai ser um ano de fartura agrícola. Ogum também é da família das matas. Por isso muitas chuvas, com Oxumarê.
JMN: Por que o candomblé é uma religião matriarcal?
EA: Na base, o candomblé era dominado por homens na África. Os homens que cuidavam dos jogos. A mulher só pôde jogar pelas necessidades. No Brasil elas tiveram essa abertura. No Brasil, a mulher que manda. As mulheres que guardam e zelam o axé. Os homens caçam e são responsáveis pelo toque. A mulher leva um pano nas costas para proteger o útero. Temos uma visão matriarcal. A comunidade foi fundada por três negras africanas cujos nomes são: Adetá ou Iyá Detá, Iyá Kalá, Iyá Nassô e os babalawos Assiká e Bangboshê Obitikô que fundaram o Ilé axé Iya Nassô Oká a primeira casa do Brasil, onde sou neta é filha de santo do terreiro Ilê Axé Oba Tony. A minha atual mãe de santo e Maridalval de Oxum Yialaxé do terreiro Obatony.
JMN: E você? É feminista?
EA: Sim. Sou empoderada e represento a luta da mulher negra. É muito fácil só falar, mas hoje é preciso executar. Hoje a religiosidade está escassa e as pessoas estão sem fé. Então me ver à frente de um terreiro, por uma escolha de Oxalá, onde muitos achavam que eu não iria ser capaz é gratificante. Já sofri intolerância na escola, faculdade. Não só pela religião, mas pela cor. Os grupinhos me tiravam de canto como se eu fosse incapaz. Mas sempre levei meus estudos a sério.