Artigo de Michel Alcoforado
Monja Cohen atualizou as informações no Linkedin. Está de emprego novo. Agora, ela é embaixadora da moderação de uma empresa de bebidas alcoólicas, a Ambev.
Descobri em uma reportagem que a líder espiritual fará parte de uma campanha criada com intuito de se valer do autoconhecimento e da ponderação para estimular o consumo responsável de álcool. Em um comunicado recente, a cervejaria lembra que ambos "possuem um objetivo em comum, que é o de promover o equilíbrio e a moderação, tão necessários no momento atual".
Foi um rebuliço. Afinal, o que uma monja budista acostumada a horas de meditação, a repetição de mantras intermináveis e tão distante do vuco-vuco da vida mundana pode ter em comum com uma a empresa campeã na venda de cervejas e outras bebidas capazes de levar os juízos, o bom senso e nos jogar no abismo dos prazeres da carne?
Não sou religioso, não entendo dos preceitos budistas, desconheço o código de ética dos monges e, em pleno caos de 2021, sou incapaz de dizer se a parceria entre Ambev e a monja colocam em xeque os limites entre sagrado e o profano, tão caros à humanidade desde sempre. No entanto, como antropólogo, com anos de experiência ajudando as marcas a se conectarem com seus consumidores, afirmo que o co-branding entre Ambev e Monja Cohen é um golaço. Pelo menos, do ponto de vista dos estrategistas de marca.
É só olharmos para os últimos movimentos de Cohen, para o aumento de consumo de bebidas e para a estratégia de crescimento da empresa.
Há anos, a monja abandonou o silêncio do monastério porque entendeu que aquilo que a elite paulistana buscava no seu templo valia muito mais do que as parcas doações feitas ao final dos rituais. Não por acaso, investiu pesado na construção de uma marca pessoal desejável para o grande público, carrega mais de 2,7 milhões de seguidores em suas redes sociais e já teve programa de TV com vigorosa audiência com Fernanda Lima. Seus livros de autoajuda se multiplicam e vendem como água — e são incontáveis as suas participações em matérias de jornal, podcast, programas de rádio e outras mídias. A monja virou pop!
Se é certo que vivemos em um mundo marcado pelo autossacrifício em nome da alta performance, com o desmantelamento dos vínculos sociais, e pelo acirramento do individualismo, não resta dúvida que, em pouco tempo, a promoção de princípios de autoconhecimento, empatia, senso de comunidade, conexão com as plantas, meditação e busca pela felicidade plena viraria uma commodity, asset de marca, e valeria uma fortuna. A líder espiritual foi hábil na construção de uma marca repleta de atributos valorizados pelos consumidores na contemporaneidade, sobretudo no contexto da pandemia.
Não podemos esquecer que a chegada no novo coronavírus potencializou o consumo de álcool no Brasil. De uma hora para outra, tivemos de ficar dentro de casa, perdemos a percepção da passagem do tempo e reorganizamos, por completo, nossas prioridades de consumo. Isolados, sem qualquer expectativa sobre o dia de amanhã, abandonamos as antigas premissas que norteavam nossa relação com as bebidas alcoólicas. Deixamos de lado a ideia de que precisávamos esperar o final de semana ou o happy hour para enfiar o pé na jaca, aumentamos drasticamente consumo de cervejas, vinhos e destilados e caímos na asneira de acreditar que uma dosezinha de bebida podia fazer parte da dieta básica dos brasileiros. Pelo menos, é o que os números mostram.
Um estudo recente feito pela Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) em 33 países da América Latina mostrou que os brasileiros foram os que mais beberam desde a chegada da onda viral. Os dados mostram que 74% deles beberam durante a pandemia e aumentaram a quantidade e a frequência de consumo das bebidas alcoólicas. Superamos a média mundial. Hoje, por aqui, o consumo médio anual é 8,9 litros — o que nos deixa na 49º posição entre os maiores bebedores do mundo.
São conhecidos os efeitos perversos que o uso de álcool traz para os indivíduos e para a sociedade. Todos os anos, mais de 3 milhões de pessoas morrem no mundo em decorrência de doenças causadas pelo consumo excessivo de bebida. No Brasil, são mais de 40 mil mortes por acidentes de trânsito e 60 mil homicídios, muitos deles causados por pessoas embriagadas, segundo o biocientista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Gabriel Andreucetti.
Os executivos da cervejaria podem comemorar os recordes de vendas e os lucros vistosos nos últimos anos, mas os recentes movimentos da empresa mostram também entendimento sobre como o crescimento vertiginoso pode ter efeitos negativos para os negócios em um futuro próximo. Eles já se deram conta de que não vendem peças de guarda-roupa ou enfeites para casas. O estímulo desmedido ao consumo de bebidas pode fazer a bonança virar tempestade.
Os aprendizados da indústria de cigarros sugerem cautela. Na mesma medida, o rápido aumento do consumo de bebidas enche os cofres da empresa, mas aumenta a percepção dos problemas e pode aumentar as restrições da legislação e moralidade negativa sobre o consumo de cervejas, vinhos e destilados. Diante do dilema e preocupada com o amanhã, Ambev pede calma e moderação. Justo.
No entanto, faria sentido e seria fácil de acreditar, se os consumidores não conhecessem como a banda toca no capitalismo e o histórico da cervejaria. É conhecido o forte apetite da empresa por crescimento e, pelo menos desde a Revolução Industrial, sabe-se que as empresas investem o capital acumulado para vender mais, nunca menos.
A sacada da cervejaria ao se unir a uma outra marca (a monja) — repleta de significados como parcimônia, tranquilidade, moderação — é inteligente, pois torna a promessa de marca crível, o discurso eficaz, abre espaço para uma reason to believe e ainda permite a transferência dos atributos da líder espiritual para a líder da categoria. Além disso, reforça o compromisso da empresa com as práticas da ESG (Enviromental, Social and Corporate Governance) e deixa um recado: apesar do apetite por crescimento, estamos fazendo a nossa parte e mostrando a nossa preocupação.
A Ambev ganha os atributos, a monja leva a grana. Resta saber o que nós, consumidores, ganhamos com essa história toda.
As informações são do UOL.