Foi sentada no banco de uma igreja que Ilza Ramos Rodrigues ouviu a pregação de que um fiel daquela comunidade teria a sua vida transformada e seria reconhecido por outras pessoas. Na semana seguinte, a previsão se repetiu durante a leitura da palavra bíblica na casa de oração em Itapeva, no interior paulista. Sem demora, ela compartilhou com os filhos a mensagem que ouviu. "Só que eu não sabia que era pra mim", diz Ilza à coluna. As informações são da coluna Mônica Bergamo/Folha Press.
Era início de setembro. Dias depois, a diarista se tornaria um dos rostos das eleições deste ano após um empresário e apoiador de Jair Bolsonaro (PL) tentar humilhá-la, se negando a fornecer marmitas, por descobrir que Ilza votaria em Luiz Inácio Lula da Silva (PT). "A senhora peça para o Lula agora, beleza?", afirmou Cassio Cenali. Um vídeo do diálogo, gravado por ele, viralizou.
Naquele final de semana, em sua primeira entrevista à imprensa, Ilza falou a esta coluna que o mal havia sido transformado em bênção diante da corrente de solidariedade que se formou. Três meses depois, ela diz ter ainda mais motivos para celebrar: uma vaquinha que arrecadou cerca de R$ 50 mil, organizada pelo perfil Razões para Acreditar, permitirá à diarista de 52 anos reformar e ter o lar com que sonhou.
"Acho que chovia mais dentro da minha casa do que do lado de fora. Eu tinha que ficar correndo com vasilha. Era goteira mesmo, sabe? Agora trocou, foi comprado telha, caibro... O banheiro, então, menina do céu! Ficou chique, ficou lindo! O banheiro era um terror. Agora está azulejado todinho, tem piso na parede e piso no chão, tem uma…" —diz, antes de fazer uma pausa e esboçar um sorriso embaraçado. "Tem uma privada nova", emenda, caindo na risada.
"Não tinha nem descarga, tinha que ser com balde. Agora tem! Dá até gosto de ficar dentro do banheiro", conta, risonha. Outra novidade é uma cozinha do tipo americana, em que o espaço para o preparo das refeições é integrado à sala de estar por uma bancada. "O meu sonho era ter aquela repartição. Nas casas em que eu trabalho, a maioria tem essas bancadas. Eu achava lindo, fia do céu."
"Hoje eu vivo um sonho que nunca pensei na minha vida que conseguiria realizar", diz sobre a reforma, que também substituirá com portas e paredes os lençóis que dividiam os cômodos da antiga casa. "Glória a Deus que me preparou esse pessoal que me ajudou, senão meu sonho ia ficar para os meus filhos fazerem na casinha deles. Porque eu não ia poder."
"Tudo o que está entrando na minha casa eu só agradeço. E é tão bom, a gente se sente tão bem. Só quem passa, sabe essa emoção", continua, antes de lembrar de outra realização. "Comprei o que eu queria! Sabe o quê?", diz. "Um micro-ondas! Eu queria tanto um."
Primogênita de dez filhos, Ilza Ramos Rodrigues cursou apenas a primeira série do ensino fundamental. Aos oito anos de idade, começou a trabalhar na colheita de feijão, algodão, milho, tomate e soja na zona rural de Itapeva. As marcas desse período ainda podem ser vistas em suas mãos.
"Tenho 52 anos, mas as pessoas me dão mais porque sempre trabalhei, né? Eu vim da roça, sempre lutei na vida. Não tive infância de poder brincar, estudar. Na época, a gente não tinha opção." Além da jornada no campo, dentro de casa Ilza dividia as demandas da criação de seus irmãos com a mãe. "Eles me chamavam de mãe."
No início da adolescência, ela regressou a São Paulo, cidade onde nasceu, para trabalhar como doméstica. "Fiquei morando na casa de uma mulher. Dormia e trabalhava na casa dela fazendo faxina", afirma. Ao adentrar o relato sobre a sua juventude, Ilza silencia —e enche os olhos de lágrimas.
"Na verdade, as coisas boas estão acontecendo agora, fia. Deus me deu bastante, mas eu sofri bastante também. Não tive infância, não tive mocidade. Não pude ser uma jovem normal que pudesse se divertir e que fosse feliz. A palavra certa: ser feliz. Eu não era. Mas, claro, sempre agradeço por Deus me dar força. Provas a gente tem bastante, mas também tem vitórias", diz, abrindo novamente um sorriso.
Do período em que viveu na capital paulista, diz sentir orgulho das habilidades que adquiriu para a limpeza doméstica. "Não ia falar, não, mas as pessoas que pegam eu pra limpar a casa, não largam mais de mim. É que nem eu falo pra elas: se não for pra limpar bem limpinho, eu não pego. As pessoas sempre ficam me chamando", conta, sorridente.
A diarista afirma que ainda recebe doações de alimentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e de gás desde o episódio envolvendo o bolsonarista. Duas famílias vizinhas, com as quais dividia as marmitas que recebia até então, também passaram a ser contempladas.
"Essa cesta mesmo que eu recebo não vem só pra mim, eles [do MST] puseram essas duas famílias também junto. Eles ficam muito agradecidos, ficam felizes, eu vejo no olhar deles. E eu fico feliz por, através de mim, ajudar essas pessoas."
Não que tudo tenha se desenrolado tão facilmente após seu nome ser reconhecido nacionalmente. "Foi bom, mas assustador", relembra sobre os dias seguintes ao vídeo. Profissionais da imprensa chegaram a ficar em frente à sua casa por horas a fio, afirma. "Eu ficava trancada dentro de casa, era muita gente. Eles vinham e queriam que eu falasse tudo de novo. Aquilo estava me deixando ruim." Por causa da experiência, Ilza preferiu falar com a coluna por videochamada para evitar tumulto.
No primeiro e no segundo turno das eleições deste ano, a tensão foi maximizada. "As pessoas ficavam olhando pra mim. Mas também eu votei e já vim embora. Só uma mulher que falou: ‘É, vamos torcer’", diz. "Pro Lula", sussurra. Ela faz uma pausa e, em seguida, conclui: "Se bem que agora não tem problema falar, né? Adivinha pra quem eu votei?!"
"Eu fiquei aqui, menina do céu, com os nervos abalados no dia da eleição, com esse negócio de contagem. Mas aí foi um alívio", afirma sobre a vitória do petista. Ela diz que pretende assistir à posse do presidente eleito em 1º de janeiro pela TV e que torce por um telefonema de Lula. "Eu queria muito, e eu quero ainda, que ele ligasse para mim. Se ele falasse ‘oi, Ilza’ com aquele vozeirão, eu já ficava feliz", diz, gargalhando.
Do governo eleito, a diarista afirma esperar que ele priorize a parcela mais vulnerável da população. "Que olhe por nós, que somos pessoas bastante humildes. E diminua o preço desse negócio de comida porque está difícil. O pacote de 5 kg [de arroz] tá vintão! [Que o governo possa] dar mais chance para as pessoas que têm filhos pequenos. Eu fico tão triste de ver a criançada passando necessidade."
Ilza pretende passar este domingo de Natal (25) em sua casa recém-reformada, servida da lasanha e do frango assado tão desejados por ela em anos anteriores e na companhia dos três filhos que, diferentemente do período da pandemia de Covid-19 e de até poucos meses atrás, hoje encontram-se todos empregados.
"Tudo o que sofri criança e jovem foi compensado agora. Da noite para o dia, aconteceu isso. Precisou dessa parte [o episódio envolvendo a tentativa de humilhação pelo empresário bolsonarista] para poder Deus agir. Que Ele abençoe a todos que me ajudaram e que estão ajudando ainda. Com certeza, cada coisinha boa que fizeram para mim, eles vão ter em dobro. Todos vocês estão nas minhas orações."