De doméstica a juíza: “fui recusada em vaga por ter cara de pobre”

O curioso foi a saída que Antônia encontrou para estudar para a prova: a partir de restos de páginas de apostilas preparatórias descartadas no lixo.

De doméstica a juíza: "fui recusada em vaga por ter cara de pobre" | Divulgação
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A juíza Antônia Marina Aparecida de Paula Faleiros, 60, ainda se lembra da esperança que sentiu quando um banco privado chegou à sua cidade natal, Serra Azul de Minas, a cerca de 300 km de Belo Horizonte. "Eu tinha 17 anos, era uma menina da roça, havia acabado de concluir o ensino médio e fui concorrer a uma vaga de emprego. Fiz uma prova e sei que havia ido bem, era ótima aluna", conta. "Mas foi traumático, nem em último lugar fiquei. Muito tempo depois, soube que a prova sequer foi corrigida. Eu não pertencia àquele mundo privilegiado nem da aparência e nem da nascença", conta Antônia, há 18 anos como juíza de uma comarca da Bahia.

Foi a exclusão marcante "pela cara de pobre" na disputa pelo emprego que a levou a sair da cidade em busca de mais oportunidades. Em Belo Horizonte, morou na rua por meses e foi empregada doméstica por cinco anos. "De onde eu venho, levo uma lição de disciplina, coragem, determinação, de não desistir. É ilusão achar que todos estão no mesmo patamar de concorrência aos postos de poder. Meritocracia é uma ilusão em diferentes níveis do discurso."

Antes e depois na vida da juíza Antônia: "A meritocracia é uma ilusão", diz ela.

Abrigo no ponto de ônibus

Quando Antônia chegou à capital mineira acreditou que conseguiria abrigo. "As pessoas lá na minha cidade diziam 'vai que vou te dar uma força', mas aí, quando você chega na porta da casa delas ouve que elas não podem te receber porque a casa é pequena." Acolhida por parentes, logo arrumou trabalho como empregada doméstica mas com salário impossível de bancar aluguel. 

"Num determinado dia, ao terminar meu serviço de faxina, fui convidada a me retirar da casa onde estava. Fiquei sem ter onde dormir e fui para um ponto de ônibus aguardar o horário de voltar para o trabalho e assim fui ficando." Foram cerca de seis ou sete meses na rua até que uma desconhecida a recebeu em sua casa.

“Eu gosto sempre de repetir que histórias de vida podem ser inspiradoras, mas o que nos credencia é o que a gente faz dia após dia da nossa existência”

Sem qualquer romantização de sua história, ela conta que o percurso da doméstica que chegou ao alto cargo do Judiciário foi uma longa caminhada, passo a passo, que começou quando, aos 22 anos, concorreu ao primeiro concurso público para ser oficial de Justiça, que exigia apenas o ensino médio. "Foi o mais marcante, porque me tirou da rua e me deu o mínimo para sobreviver." 

O curioso foi a saída que Antônia encontrou para estudar para a prova: a partir de restos de páginas de apostilas preparatórias descartadas no lixo.

"Fui até um cursinho e lá descobri que custava muito além do que eu poderia pagar com meu salário de doméstica. Então, passei a recolher as cópias manchadas ou inutilizadas que outros alunos jogavam no lixo."

Primeira de cinco filhos, ainda hoje repete frase da mãe, de pouco estudo. "Ela dizia que quem tem a cama feita pode ser mais ou menos, quem não tem precisa ser muito bom. Foi minha primeira lição sobre a desigualdade brasileira".

Em 1985, o novo emprego apresentou o mundo do Direito à Antônia, carreira com a qual passou a sonhar, e permitiu que a ex-trabalhadora doméstica fosse morar numa pensão e, depois, cursar a faculdade. A partir daí, ela conta, "todos os outros concursos foram só concursos. Foram muitos, muitos. Mas não tiveram aquele impacto. A grande mudança já havia acontecido lá atrás".

Após anos de dedicação ao direito e inúmeros concursos prestados até alcançar a magistratura, Antônia se diz realizada com a sua atuação e as possibilidades de olhar para os outros como muitas vezes desejou ser olhada durante sua trajetória. "Muitas vezes você não responde àquilo que a pessoa quer ouvir, mas você pode dar uma resposta para ela com todo o respeito, atendê-la, ter abertura e empatia."

A juíza faz questão de passar sua história adiante como forma de inspirar outros. Escreveu o livro "Colchas de retalhos para Mel dormir" para sua neta, em que resgata sua infância.

Como juíza criminal, ela sabe que nem sempre oferece a providência que o condenado quer; seu trabalho é impor penalidades. "Mas sempre olhando para o ser humano além do delito." A situação rotineira de hoje a remete ao ofício do passado, quando foi empregada doméstica. "Havia uma patroa que fazia questão de manter uma enorme distância de mim", conta. "E isso, justamente, na época em que eu passava a noite na rua, no ponto de ônibus."

Antônia chegou a pedir para morar no quartinho dos fundos da casa da empregadora, mas o que ouviu, foi que "negrinha dentro de casa é tentação pra marido e filho". "A negrinha, no caso, era eu", diz a magistrada, ciente de que o preconceito de raça e classe se perpetua nos corredores da Justiça.

Diante de um Brasil ainda tão injusto, a juíza deixa sua mensagem para o ano que começa: "Com as ferramentas que tiver em mãos, você conseguirá fazer a sua mudança. Não se compare com outros, comparação só existe quando duas pessoas saem do mesmo ponto de partida. Como isso não acontece, dentro das suas possibilidades, seja você a senhora do seu destino".

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