Dona Rosângela Jacinto, 55 anos, tinha passado a noite em claro, na varanda do apartamento em Armação. Chorou, ao longo de toda a madrugada, segurando duas contas de luz: um boleto de R$ 180, outro de R$ 140 e uns quebrados, de dois meses seguidos. Não tinha como pagar. Era o ápice de sua crise financeira: o negócio de comidas por encomenda não andava bem e, agora, já não sabia por onde começar a administrar as dívidas.
Ela estava tão mal que, no dia seguinte, a filha mais velha fez um convite: que fosse almoçar em sua casa, com as netas. “Ela disse: 'Mãe, vem almoçar com suas netas que peço um Uber. Passo no cartão e você vem”, lembra. O transporte veio em boa hora: Rosângela sequer tinha dinheiro para a gasolina. O que ela não imaginava era que aquela viagem de Uber mudaria sua vida.
Hoje, um ano e seis meses depois daquela corrida, Tia Rosa, como é mais conhecida, deixou de ser passageira. Entrou na empresa como motorista e, mais do que isso: se tornou a primeira e única motorista parceira da Uber a ser reconhecida com cinco estrelas em toda a região Nordeste.
Ou seja: das mais de 4,5 mil viagens que conduziu em todo esse período, recebeu nota cinco estrelas – o máximo permitido pelo aplicativo – em todas. Nem mesmo um único 4,9. Sempre 5. Em todo o Brasil, dos cerca de 500 mil motoristas parceiros da Uber, apenas quatro são cinco estrelas.
“Comecei a dar o meu melhor para as pessoas. E isso foi crescendo, tomando uma proporção maior, enquanto eu estava muito feliz porque, pela primeira vez, eu estava fazendo uma coisa que só dependia de mim”, contou, ao CORREIO, nessa sexta-feira (14), poucos dias após ter sido homenageada.
Só esta semana, ganhou um smartphone novo – um Samsung Galaxy S8 – e uma cesta de café da manhã da empresa e chegou a receber um buquê de rosas dos colegas. Há pouco mais de duas semanas, recebeu um troféu que indica que ela é reconhecida como 5 estrelas. Na próxima quinta-feira (20), vai a São Paulo: ganhou uma viagem para conhecer o escritório da Uber no Brasil.
De acordo com a Uber, para ganhar esse reconhecimento, o motorista precisa ter sido avaliado com cinco estrelas nas 500 últimas viagens realizadas. E é preciso ter, no mínimo, 1.000 viagens já realizadas na plataforma.
Viúva e sozinha
Natural de Fortaleza (CE), Tia Rosa aportou em Salvador há 30 anos. Na época, os pais se mudaram para montar aqui uma empresa de prestação de serviços gerais. Numa das viagens de férias para a cidade natal, porém, conheceu o homem que viria a ser seu marido.
“Foi uma paixão arrebatadora”, lembra. Se mudou para lá, onde morou por mais dois anos, até engravidar. Como a gravidez era de risco, o pai pediu que eles se mudassem para a Bahia. Queria que a neta nascesse aqui, ao lado do resto da família. Tia Rosa atendeu ao pedido do pai e, assim, acabou trancando a faculdade de Direito.
Nunca mais voltou à faculdade. “O marido era muito machista, eu não podia sair muito de casa, aquela história toda. Fiquei presa. Depois que ele faleceu, me senti na obrigação de ir à luta, arregaçar as mangas e correr atrás para sustentar minhas filhas”, conta, referindo-se à morte do marido, 12 anos atrás, vítima de um derrame.
Ela passou por algumas empresas até chegar a um restaurante de comida nordestina. Lá, trabalhou como chef de cozinha, preparando quitutes tradicionais do Ceará, como baião de dois e risotos com ingredientes típicos. Só que, cinco anos atrás, o estabelecimento foi vendido e Rosa preferiu não continuar com os novos sócios.
Foi quando começou com as encomendas. Chegou a fazer entre 70 e 80 pratos para entrega por dia. “Mas a situação do país foi piorando. As encomendas diminuíram e eu, que sempre fui uma pessoa que batalhei demais, me vi perdida”.
A corrida que mudou tudo
Naquele dia, há um ano e meio, quando entrou no carro como passageira da Uber, Rosa logo recebeu o “bom dia” do motorista. Só que ela não conseguiu responder. Ao invés disso, desabou no choro. O rapaz, sem entender, perguntou se alguma coisa estava acontecendo. Ela pediu desculpas; não conseguiu segurar o que vinha guardando sozinha por tanto tempo.
Contou, brevemente, o que vinha acontecendo. Explicou que a situação financeira só piorava. A resposta foi inusitada.
“Ele perguntou se eu tinha carro. Eu disse que tinha. ‘Meio suadinho, mas tenho’. Ele disse: ‘é seu?’ e respondi que sim. Então, ele perguntou: ‘por que a senhora ainda não é Uber?”.
Naquela época, Rosa nem mesmo entendia direito o que era Uber.
O motorista disse que, se ela quisesse, a levava na sede da Uber para fazer seu cadastro. Rosa aceitou, fez o cadastro e correu para adicionar “atividade remunerada” na carteira de motorista. Quando o novo documento chegasse, o rapaz pediu que ela ligasse para ele. Prometeu ensiná-la a usar o app.
Cinco dias depois, ela telefonou para ele. Os dois se encontraram perto do Hospital da Bahia e o moço rapidamente ligou o aplicativo. “Fez ‘plim’ e ele disse que eu estava online. Na mesma hora, teve uma chamada. Eu, muito nervosa, disse: ‘desliga, desliga’. Ele disse: ‘não, essa é a sua primeira viagem. Vá e nunca mais vai faltar dinheiro em sua casa”, lembra.
Mais de uma vez, ela diz: aquele motorista – chamado Fábio – foi um anjo em sua vida. Os dois perderam o contato depois que ela teve o celular roubado. Nunca mais se falaram.
Mas foi depois disso que sua história mudou. Disse a si mesma: aquele trabalho não era o que sonhara para sua vida. Sequer imaginava, um dia, ter um trabalho assim. Mas já que estava ali, queria ser a melhor. Começou, então, a preparar o carro.
No Dia das Mães, a filha perguntou o que ela queria de presente: ela pediu para ganhar balinhas personalizadas, dessas que ficam em restaurantes, com o próprio nome. E as outras ideias foram vindo da própria rotina: como gostava de tomar cafezinho no carro, comprou uma cafeteira. Começou a oferecer torradinha, biscoito amanteigado, goiabinha e até biscoito sem glúten.
Toda vez que um cliente entra no carro, é recebido da mesma forma.
"Eu digo: ‘bom dia, seja bem-vindo ao Uber da Tia Rosa’. A pessoa entra já com o astral bom, a energia positiva. Eu pergunto se a pessoa tomou café da manhã e, se não tiver tomado, digo: ‘olhe, você vai tomar café comigo’. A pessoa já se surpreende”, explica.
O carro virou mais que transporte. Diz que parece até um divã. Às vezes, precisa consolar passageiros: já passou por tudo desde a adolescente que tirou uma nota baixa até o marido que brigou com a esposa. “Às vezes, preciso ser um pouco psicóloga. Eu converso com o marido querendo se separar e até boto o cabra para voltar para casa”.
O carro ficou conhecido por ter de tudo para os clientes: de antiácido a preservativos (e, sim, já teve passageiro que pediu pela camisinha). Aos domingos, carrega um cooler com ‘piriguetes’ – as latinhas de cerveja com capacidade para 269 ml. Uma vez, chegou para pegar um passageiro no aeroporto e ofereceu o café. O homem recusou, disse que pretendia tomar uma cerveja “bem gelada”.
Ela ofereceu, mas ele não quis as cervejas oferecidas por ela. “Ele ficou meio assim e disse: ‘tia Rosa, eu rodo o Brasil inteiro e nunca na minha vida encontrei um Uber igual a senhora. Só tem uma coisa: não tomei sua cerveja porque não é da marca que eu gosto, porque sou coordenador da Bohemia”, contou. O passageiro pediu o endereço dela e disse que mandaria um presente. Alguns dias depois, recebeu seis caixinhas de cervejas artesanais da marca.
Sem medo
São, no mínimo, oito horas de trabalho por dia. Com frequência, ultrapassa e chega a 10, 11 horas. Sextas e sábados são de lei: entra a madrugada dirigindo. Já ficou até “de virote”.
“Não tenho medo. A necessidade faz a gente ter coragem de enfrentar tudo”, diz.
Para entrar em locais perigosos, fez uma bandeirinha com o nome ‘Uber’, que deixa presa no carro. Assim, já é identificada. Mesmo assim, já passou por alguns perrengues. Uma vez, saiu para pegar um passageiro na localidade do Pela Porco, na Sete Portas. Ao chegar lá, um traficante fez um sinal para que ela não subisse com o carro. Dona Rosa não viu.
Um segundo homem apareceu instantes depois, com uma arma em punho. Perguntava se ela não tinha visto o aviso. Dona Rosa respondeu que não. “Ele disse: ‘quando a senhora entrar, abaixa o vidro e acende a luz. Avise seu cliente para vir e daqui mesmo a senhora desce’. Eu atendi e saí depois com o passageiro”.
Para a própria segurança, ela toma alguns cuidados: sempre busca uma referência dos passageiros – um hotel, um condomínio, um restaurante. Evita buscar pessoas que estão no meio da rua.
Por semana, ela fatura, em média, R$ 1,5 mil. Às vezes, mais; às vezes, menos. Hoje, se dedica à Uber por completo. Deixou de fazer comida por encomenda: agora, só se for uma ocasião especial, para algum cliente mais próximo e olhe lá. Começou com um Ford Fiesta 2011 “todo velhinho”. Este ano, comprou um Renault Logan 2017.
Hoje, ela virou até mentora de outros motoristas parceiros da Uber. Pelo Whatsapp, participa de dezenas de grupos de motoristas. Um deles, formado apenas por jovens garotos – na casa dos 20 anos, todos moradores de bairros populares – a procurou justamente para que ela ensinasse um pouco do que faz.
Boa parte já comprou cafeteiras para deixar no carro, enquanto outros já investiram nas balinhas personalizadas. “O grupo se chama Águia, porque águia voa alto. Eles querem voar alto”, explica.