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O espírito do tempo, por Álvaro Fernando Mota

Entenda como o espírito do tempo molda as leis e costumes ao longo da história. Da Babilônia ao Direito Romano, veja a evolução do direito.

Espírito do tempo e a evolução das leis | Reprodução

Por: Álvaro Fernando Mota

Advogado

Quando na escola estudamos História, nossos professores ou professoras informaram (ou ainda informam) algo imprescindível para a compreensão do mundo em seu desenho atual e sempre mutável: existe um espírito do tempo a determinar como as pessoas agiam e se comportavam em todas as eras. Assim, o que para nós pode hoje parecer uma coisa estranha ou condenável, não o era em certas épocas.

Esse processo nos ajuda a entender, então, as mudanças na lei ao longo dos tempos. Vamos imaginar uma pessoa residente na Babilônia no século XVIII antes de Cristo e outra vivendo num país ocidental qualquer no século XXI. Ambas as pessoas, testemunhas de um homicídio que não se comprovou existente. Na Babilônia do século XVIII a.C. a testemunha será morta; no mundo atual, pode somente ser acusada de perjúrio, se muito.

Se olhamos a partir de nossa perspectiva atual, sem levar em conta as condições próprias do espírito do tempo para a feitura dos dois códigos de leis – o de países ocidentais quaisquer e o de Hamurabi – haveremos que julgar a existência de ato de injustiça em Hamurabi, mas antes de tudo é preciso notar que um código de leis que consideramos ruins é melhor que a inexistência deles e está aí o avanço representado pelo documento babilônico.

O espírito do tempo molda costumes e leis – e foi ele, por exemplo, que nos legou uma legislação evoluída para seu tempo e que se mantém firme até nos dias de hoje, Direito Romano, cujos princípios sedimentam boa parte do Direito Ocidental, posto que algumas das pedras angulares do Direito em si vêm desde Roma – e isso é fundamental na medida em que jamais se poderá mudar a ideia de “in dubio pro reo” ou ainda de “fumus boni iuris”, posto que a ideia da inocência e do Direito a ser preservado como regra somente inexiste pela má-fé, pela desídia ou, pior, pela desonestidade.

O espírito do tempo, assim, molda a percepção humana quanto ao Direito e outras atividades humanas e, neste sentido, ele se deixa influenciar pela cultura e prática de cada época, o que poderá fazer com que o que atualmente é uma banalidade em tempos remotos fosse prática criminosa – e isso poderia se dar, por exemplo, sob o ponto de vista até das práticas religiosas, proibidas de acordo com a conformidade em que se formava determinado estado ou sociedade.

Para ilustração, tome-se o caso das Ordenações Filipinas, legislação da qual somos tributários para o bem e para o mal, e que previam em durante sua longa vigência que um clérigo católico poderia ser declarado como amante de uma mulher – e esta do padre – se fosse o religioso avistado por sete ou oito vezes na casa da mulher em período de seis meses. Era o bastante para se punir a mulher, não o padre, que seria devolvido à sua ordem, sem dano pelo tipo criminal em que se inseria.

Aí cabe observar que o espírito do tempo a determinar a feitura da lei – em qualquer caso – tende a atender o interesse de grupos sociais hegemônicos, daí porque se cita o dispositivo das Ordenações Filipinas em que, sob acusação de manter relações com um clérigo católico em Portugal seja a mulher punida, mas não o religioso – que certamente pertence a um estrato social superior e, além de tudo, é do sexo masculino em uma sociedade na qual o papel da mulher é de submissão.

Neste aspecto convém que celebremos o fato de que o espírito do tempo que determina leis, normais, comportamentos sociais e culturais se renove com o passar das eras – o que nos distancia de uma normatização que estabelece legalmente uma punição injusta, desarrazoada, desproporcional ou equivocada a um ser humano tão somente por sua condição social, de cor, de origem social, étnica, cultural ou religiosa.

O espírito do tempo que produziu leis e normas que hoje nos parecem ser ruins, mas que faziam sentido quando pensadas, dada a condição em que existiram, deve nos servir de lição para colocar à nossa frente a projeção de futuro. Temos que trazer em nós um vento renovador, mesmo de ousadia, a acolher normas que melhorem as leis e as normas, que acolham a realidade presente e, se possível, seja mecanismo de antever injustiças futuras.

Álvaro Fernando da Rocha Mota é advogado. Procurador do Estado. Ex-Presidente da OAB-PI. Mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela PUC-SP. Ex-Presidente do CESA-PI e atual Presidente do Instituto dos Advogados Piauienses – IAP

*** As opiniões aqui contidas não expressam a opinião no Grupo Meio.
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