As marcas que o corpo carrega após décadas de trabalho no lixão de Gramacho ficam pequenas quando comparadas às dificuldades que a vida impõe do outro lado do muro do aterro sanitário de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Há seis meses deitado sobre uma cama num casebre de um cômodo, Jorge Pinheiro dos Santos, 66 anos, vive as consequências de 30 anos trabalhando como catador de lixo.
O aterro sanitário de Gramacho possui 60 milhões de toneladas de lixo acumuladas em 1,3 milhão de metros quadrados. O fechamento gradativo do lixão começou em abril de 2011 e estava programado para terminar em junho deste ano. A prefeitura, no entanto, chegou a antecipar o fechamento para abril, mas depois adiou para maio o fim das atividades no aterro.
Com o fim do aterro de Gramacho, as 8,5 mil toneladas de lixo da cidade do Rio de Janeiro vão para a Central de Tratamento de Resíduos de Seropédica. O restante que vinha de outros municípios vai para a central de Nova Iguaçu e uma a ser inaugurada em Paracambi, todos também na Baixada Fluminense.
A rotina cruel dos catadores de Jardim Gramacho ganhou projeção e o documentário "Lixo extraordinário" chegou a disputar o Oscar na categoria no ano passado.
Jorge, ou Jorjão, como é chamado na comunidade da Chatuba, sofreu com dores nas articulações e no joelho durante muitos anos. Mas um dia, quando acordou, não podia mais colocar os pés no chão. Com os dedos dos pés contorcidos e as pernas atrofiadas, Jorjão não levanta mais da cama e conta com a ajuda dos vizinhos e do pastor da igreja da comunidade para se alimentar.
?Passei a vida toda subindo e descendo essas rampas aqui do lixão. E hoje em dia a situação é melhor que antigamente. Na minha época, descia com tudo o que catava no burrinho sem rabo (espécie de carroça) e ficava atolado no mangue até o meio das pernas. Era muito esforço?, diz Jorjão.
Vivendo numa região onde não há saneamento básico, pavimentação e os barracos, na maioria, são feitos de madeira, o ex-catador vive sozinho numa casa doada pelo pastor da igreja da comunidade e se alimenta com a ajuda dos vizinhos.
?Todo dia o pessoal da igreja traz almoço e janta para mim. Sou sozinho no mundo, mas eles passaram a ser minha família. Nunca tive filhos, não casei e meus irmãos me abandonaram?, diz Jorjão, referindo-se à família com a qual ele perdeu o contato logo depois que foi para Gramacho.
?Vivo do lixo, mas não sou lixo?
Catadores há 12 anos, Damiana Jesus Maria, 52 anos, e Carlos Henrique de Oliveira, 40, já perderam quatro filhos desde que ficaram desempregados e foram trabalhar no lixão. ?Um morreu de pneumonia, outros ficaram desnutridos e um deles até hoje eu não sei por que morreu. Cheguei no hospital, a mulher olhou para mim e disse que eu era uma transmissão de doença ambulante. Fui lá com um filho doente e ela me tratou como lixo. Eu vivo do lixo, mas não sou lixo. Sou gente?, disse Damiana, visivelmente emocionada, após interromper o trabalho no meio do lixão para dividir com alguém um pouco da sua história e indignação.
Após observar a mulher durante vários minutos e consentir com tudo o que ela dizia balançando a cabeça, Carlos resolveu intervir. ?Temos nove filhos vivos e trabalhamos muito para sustentar todos. Muitos ainda são pequenos. Somos pobres, mas vivemos do nosso trabalho. Ela (Damiana) vinha trabalhar aqui na rampa mesmo quando estava grávida. A gente nunca teve escolha?, afirmou o catador, pedindo licença para poder voltar ao trabalho.
Para Ana Maria Silva, 64 anos, o descaso não é só do lado de fora do aterro. Segundo ela, inúmeros amigos já morreram atropelados pelos caminhões e tratores que circulam nas rampas de Gramacho. ?Já perdi as contas. Quantos amigos já vi morrer debaixo dessas rodas. Eles não veem gente aqui. Somos coisa. Não querem nem saber, passam por cima da gente mesmo?, disse a catadora, indignada.
Seis filhos e menos de três metros quadrados para viver
Aos 27 anos, Daniele Áurea Mendes da Silva vive do outro lado do muro do aterro sanitário com seis filhos pequenos, além do marido, num cômodo de madeira com cerca de três metros quadrados. Apesar da falta de espaço e das condições precárias em que vive, Daniele prefere se apertar em uma cama de casal e uma de solteiro para que ninguém fique no chão. ?Aqui tem muito rato e cobra. Não posso colocar nenhum dos meus filhos no chão?, afirmou a mãe.
A família vive num casebre de madeira e para proteger os filhos do chão de terra, ela usa alguns tapetes no chão irregular. Nenhum barraco da comunidade possui água encanada, a não ser a casa do Sr. Jorjão. Ele puxou um cano de água da rua, que abastece toda a comunidade.
Todos utilizam baldes para pegar água na casa de Jorjão. Mas o abastecimento só é feito três vezes por semana, nos dias em que a água cai. A prioridade para a maioria é dar banho nos filhos e cozinhar. Como poucos barracos possuem banheiro, a maioria improvisa um lugar nos fundos de casa, normalmente no meio de muito entulho.
?Às vezes, tenho vergonha que minhas amigas venham aqui. Então, prefiro nem chamar. Mas sou feliz, meus filhos e meu marido são as maiores preciosidades que eu tenho na vida. Fico feliz do lado deles em qualquer lugar?, garante Daniele, que há 12 anos é casada com um catador e também já trabalhou nas rampas do aterro.
A família não tem geladeira em casa, o que dificulta a vida da dona de casa para conservar a comida dos filhos, que têm entre 5 meses e 12 anos. ?Muitas vezes a batata da sopinha estraga só de um lado. Sei que não posso ficar jogando comida fora, mas não tenho coragem de dar para os meus filhos?, diz Daniele.
Se não bastassem as dificuldades impostas pela vida, os catadores ainda convivem com milhares de moscas, insetos e muito mau cheiro, mesmo estando do outro lado do muro do aterro sanitário. Isso se deve ao despejo clandestino de lixo no interior da comunidade. Para não pagar a entrada do aterro, vários caminhões entram na comunidade durante a madrugada para despejar lixo.