Eles moravam em um apartamento de R$ 1,5 milhão. Eram analistas do Banco Central, um dos concursos mais concorridos do Brasil. Ganhavam, juntos, um salário de R$ 30 mil. Se hospedavam em resorts ou faziam viagens internacionais uma vez ao ano. Fizeram o enxoval de cada um dos três filhos em Miami, nos EUA.
Mas, de repente, o capixaba Igor Leal e a mineira Adriana Faria, aos 35, decidiram abandonar tudo e embarcar com os filhos Beatriz, 5, Theo, 3 e Davi, 5 meses, rumo a um estilo de vida muito diferente daquele que tinham.
Trocaram a casa própria em Belo Horizonte por uma república de estudantes. Deixaram os empregos em confortáveis escritórios para acolher jovens ou simplesmente fazer a lavanderia de outras famílias. Não pagam mais previdência nem investem em ações. Usam, agora, peças de roupas de segunda ou até terceira mão.
"Partimos para terras tão distantes para, nessa nova realidade de vida, encontrar uma paz interior que antes não conhecíamos", diz o casal no cartão enviado à família e amigos do Brasil neste Natal.Católicos, os brasileiros ingressaram em um grupo religioso, em que padres, freiras e famílias podem viver em apartamentos lado a lado ou até numa mesma casa.
Reconhecida pelo Vaticano, a Comunidade Caminho Novo, de origem francesa, conta com 2.000 membros de 30 nacionalidades."Há anos, a gente ajudava muito a nossa paróquia em BH. Mas chegou um momento em que percebemos que já não era suficiente, faltava algo. Nós queríamos dar esse 'a mais' para Deus e também morar no exterior com os meninos, conhecer novas culturas. A gente decidiu encarar de cabeça", conta Igor. Faz parte do compromisso com a missão religiosa estar disponível para ser enviado a diferentes partes da Europa ou África. Os brasileiros já moraram em abadias na Espanha e no interior da França e contam que vários destes mosteiros na Europa estão em desuso por falta de novos religiosos.
As casas --do tamanho de castelos-- têm sido confiadas à comunidade francesa.Desde agosto de 2016, o casal encara um desafio ainda maior: se tornaram responsáveis por uma república de universitários com 18 a 25 anos, em Nantes, sexta maior cidade da França. No mesmo prédio, vivem 58 pessoas, entre freiras, um padre e 48 estudantes.Igor e Adriana têm tarefas diferentes na casa. Ele é o diretor da residência estudantil e cuida das obras do prédio, do cuidado de cada jovem que mora ali e até da limpeza do jardim. Já a brasileira é responsável pela contabilidade e pela gestão das compras da casa em geral, mas também colabora na lavanderia ou na cozinha.
A rotina do casal se assemelha a de monges beneditinos. Sob o lema "ora et labora" [reza e trabalha], Igor e Adriana participam de orações e missas diárias e trabalham seis horas por dia. "É verdade que também trabalhamos aos finais de semana. Às vezes, temos que ir para outras cidades participar de retiros ou fazê-los aqui em Nantes", explica Igor.
Antes de se dedicar à experiência religiosa, o casal teve que tomar uma decisão que desagradou uma parte da família dos brasileiros. Igor pediu demissão do cargo de analista no Banco Central. Abdicou do salário de R$ 15 mil e da carreira que está entre as mais disputadas em concursos federais. Segundo dados do IBGE, a concorrência é de 583 por vaga.
"Meu irmão achou que eu tinha ficado doido", ele lembra. Igor contou para a mãe, mas não teve coragem de dizer ao pai, que havia deixado o Banco Central.A medida foi tomada, porque Adriana teve a licença não remunerada aprovada, mas a gerência do banco negou o pedido de Igor. A lei dos servidores federais n° 8.112/90 permite que se peça uma licença de um ano por motivos pessoais, desde que seja autorizada pelo órgão.
"Tentei argumentar para o gerente que eu queria dar um ano para Deus e repensar a minha vida em família. Ele respondeu que pouco importava o que eu iria fazer, mas não poderia conceder o benefício", conta Igor. "Ele não achou que eu seria capaz de pedir demissão nem eu imaginei que seria."Com a demissão do marido, Adriana pediu uma licença para acompanhar o cônjuge, que não precisava mais de aprovação do banco.
Na Caminho Novo, os brasileiros não têm carteira de trabalho ou salários. Para ingressar na comunidade religiosa, eles aderiram ao voto de pobreza. Em troca do serviço voluntário, a família toda é mantida financeiramente pela comunidade.
Igor e Adriana devem prestar contas do que gastaram, como roupas, mantimentos ou gasolina. É permitido que a família gaste o orçamento à medida da sua necessidade, mas a ordem é buscar uma simplificação de vida.
"A gente tenta ganhar tudo, em vez de comprar. Trocamos roupas e brinquedos entre as famílias", conta Adriana. Tudo na comunidade pode ser compartilhado, como roupas de cama ou um conjunto de talheres. "Eu fico caçando as facas e garfos que combinam para a mesa ficar mais bonita um dia ou outro", diz Igor.
"Funciona assim: se o celular da Dri estragou, ela pode ganhar um outro da comunidade, mas não devemos esperar que seja o top de linha", exemplifica o brasileiro.As crianças, no entanto, não passam pelos mesmos sacrifícios dos pais.
"A Bia e o Theo fazem natação e judô. Eu consultei a comunidade e vou colocá-la em uma colônia de férias. À medida do possível, eles devem levar uma vida normal", diz Adriana
.Segundo o casal, o entendimento do grupo católico é que os pais se engajaram, mas as crianças não tomaram essa decisão.
Os brasileiros dizem que se tornaram livres ao abrir mão dos bens materiais. Atualmente, as economias feitas no Brasil estão "congeladas" e o aluguel do apartamento em Belo Horizonte é revertido integralmente para a casa da comunidade no Brasil."Largar de todo esse consumismo nos fez mais livres.
Em vez de ficar acumulando coisas, buscando o lucro, passamos a gastar mais coração na relação com os outros e com a família", comenta Igor.O casal já não pensa em voltar ao antigo estilo de vida. "A gente descobriu o nosso chamado. Queremos entregar a Deus os nossos talentos, as nossas inteligências, e que não sejam mais usados para a nossa autorrealização ou crescimento financeiro."Segundo eles, a nova vida na França preencheu um vazio que tentaram preencher por anos. "Agora, sim, a nossa alegria é completa".