No final do mês de setembro, uma equipe da Polícia de Estado da Itália desmantelou mais um esquema de fraude relativo a processos de reconhecimento de cidadania italiana por direito de sangue (jus sanguinis). Os envolvidos são cinco brasileiros e dois funcionários da prefeitura da pequena cidade de Piombino Dese, no Vêneto, que tem 9,5 mil habitantes. Esse tipo de operação tem se tornado corriqueira em várias localidades do território italiano. Há casos de norte à sul. O chamado 'modus operandi' é sempre o mesmo: por uma quantia que varia de 4 a 10 mil euros, agências administradas por brasileiros e italianos prometem em poucos dias o início a obtenção de cidadania e passaporte.
"Hoje, nas grandes cidades para que o estrangeiro de origem italiana consiga a residência é preciso pelo menos seis meses. O mesmo tempo é necessário para que se dê entrada no pedido de cidadania", explica Michela Bochicchio, vice-chefe da Polícia do Estado, da cidade de Pádua, que participou da operação de busca e apreensão no departamento de registro civil da cidade de Piombino Dese. "Sequestramos a documentação referente a 300 processos depois que fomos informados pela polícia federal de Pádua sobre um elevado número de pedidos de passaportes em tempo recorde ", acrescenta a representante da polícia italiana. Os suspeitos não estão presos e são acusados de falsidade ideológica em atos públicos e introdução ilegal de cidadãos estrangeiros na Itália.
Pacote turístico com passaporte incluso
Verbania, Modena, Rovigo, Roseto degli Abruzzi, Savona e Ospedaletto Lodigiano são algumas das localidades que, de uma hora para outra, viram o número de residentes brasileiros aumentar consideravelmente. "Muitos desses brasileiros que caem no conto do vigário são ingênuos. A lei é clara. Para obter a cidadania em território italiano é preciso ter residência fixa. Não basta passar uma semana ou um mês", observa Rocco Cotroneo, correspondente do jornal Corriere della Sera, no Rio de Janeiro, que fez várias matérias sobre o assunto. "O objetivo final não é viver no país dos antepassados. É ter o documento, poder passar aos filhos ou mesmo usar o passaporte italiano para morar em outro país da Comunidade Europeia. Sem falar, nos que, por vaidade, não querem perder tempo na fila da imigração".
Vaidade ou necessidade, a procura por atalhos menos burocráticos aumentou o número de quadrilhas que falsificam documentos com a ajuda de servidores públicos e policiais italianos corruptos. O chamado pacote de turismo-passaporte ganhou força após uma norma de 2002 que estabeleceu que os descendentes de italianos, em posse de documentos que comprovem tal origem, podem requerer a cidadania em qualquer cidade italiana desde que comprovem residência fixa no local. A decisão abriu uma brecha para a criação de agências que prometem serviços rápidos principalmente pelas redes sociais. Não é de se admirar que algumas cidadezinhas passaram a receber centenas de supostos descendentes; como é o caso de Ospedaletto Lodigiano, a 50 km de Milão. Dos seus 1.574 moradores, 1.188 eram brasileiros inscritos no registro de italianos residentes no Exterior. Em 2016, uma ação batizada de "Operação Carioca" prendeu cinco pessoas; o dono da agência e sua mulher, um fiscal municipal, chefe da polícia local, e um oficial de Estado da prefeitura, desmontando todo o esquema fraudulento em Ospedaletto Lodigiano.
Sem lenço e sem documento
As autoridades italianas acreditam que a máfia dos passaportes movimentou cerca de 7 milhões de euros em dinheiro ilícito em poucos anos. Acredita-se que centenas de brasileiros tenham voltado para casa com o passaporte europeu nas mãos. Um destino muito diferente coube aos 1.188 brasileiros de Ospedaletto Lodigiano que perderam o valioso documento na "Operação Carioca". A advogada brasileira especializada em imigração Daniela Romita Giorgetti, sócia do escritório ILC International Legal Consulting - Law & Business Firm, de Milão, atende a 50 clientes que caíram nessa emboscada.
"Nós não cuidamos de processos de cidadania presencial que são os mais comuns. O nosso foco é judicial por linha materna quando existe uma mulher na linha de sucessão que teve um um filho(a) nascido antes de 1948", antecipa a advogada brasileira. "De qualquer forma, acabamos pegando alguns casos como os de Ospedaletto. Essas pessoas tiveram a cidadania cancelada. Já entramos na Justiça para poder refazer o processo de forma legal, como prevê a legislação", comenta ela, que explica que o tempo de espera em território italiano é de seis a 12 meses desde que se tenha residência fixa. O governo italiano, por sua vez, tem quatro anos para conceder a cidadania a um estrangeiro.
Para quem está no Brasil, é preciso muita paciência. Em São Paulo, por exemplo, o cônsul geral da Itália, Filippo La Rosa trabalha para reduzir o tempo de espera de 200 mil descendentes. Em média, o prazo é de 12 anos.
No ano passado, o consulado italiano da capital paulista concluiu 9.774 processos de reconhecimento de nacionalidade italiana, número que representa uma alta de 45% na comparação com o ano de 2017. O número de passaportes emitidos este ano até outubro - novos e renovados - foi de 22 mil. No ano passado foram 17 mil durante o ano inteiro.
"Muitos reclamam da lista de espera, mas vale lembrar que aproximadamente 35% das pessoas que requerem a cidadania não se apresentam para dar continuidade ao processo", explica o diplomata italiano, que não acredita que o boom de pedidos esteja relacionado a crise econômica. Dados demonstram que, em 2007, quando o país vivia um dos seus melhores momentos, só o consulado de São Paulo recebeu mais de 30 mil solicitações de reconhecimento de cidadania italiana por direito de sangue (jus sanguinis).
"Em todo o Brasil já temos mais de 600 mil italianos inscritos. Só no nosso consulado já chegamos a 250 mil e no Rio de Janeiro 80 mil", conclui ele que, há quase um ano, introduziu um sistema de agendamento via WhatsApp para renovação de passaporte.
Cidadania em risco
Os casos de fraude são cada vez mais comuns. E se alastram com frequência. Em Pádua, no ano passado, sete pessoas foram presas. Mais de 800 pedidos de passaportes foram cancelados. Em Verbania e Novara, sempre no norte da Itália, a Polícia chegou a prender o padre de uma igreja de Pádua que emitia certidões falsas de batismo. Algumas agências oferecem pacotes por 7 mil euros que incluem não só a obtenção do passaporte, mas também excursões com direito a visita a pontos turísticos e degustação de produtos típicos.
No ano passado, Matteo Salvini, então ministro do Interior da Itália, apresentou um decreto com mudanças na lei de cidadania. Houve quem acreditasse que o líder da extrema direita quisesse limitar somente à segunda geração - netos - a transmissão do sangue italiano (jus sanguinis). A lei foi aprovada, mas não houve nenhum tipo alteração para os descendentes.
Com a saída do líder da extrema-direita do governo, em agosto deste ano, o primeiro-ministro Giuseppe Conte foi a público defender a necessidade de uma revisão na legislação sobre o reconhecimento de cidadania por direito de sangue (jus sanguinis). A declaração foi dada durante o discurso para pedir o voto de confiança da Câmara dos Deputados para seu segundo governo, uma aliança entre o Movimento 5 Estrelas (M5S) e o Partido Democrático (PD).
"A lei sobre a aquisição de cidadania italiana por parte de cidadãos residentes no exterior e que descendem de família italiana também merecem uma revisão que, por um lado, retire certas normas discriminatórias e, por outro, inclua novos critérios em relação aos já vigentes", disse o primeiro-ministro que não deu mais detalhes sobre tais medidas. Atualmente, todo filho, neto, bisneto e tataraneto de italiano pode requerer o reconhecimento de cidadania, mas há uma barreira para descendentes de mulheres que se casaram com estrangeiros antes da entrada em vigor da Constituição, em 1948.