A número regimental, declaro aberta a sessão, sob a proteção de Deus, iniciamos os nossos trabalhos". É assim que são abertas todos os dias, sob um crucifixo posicionado acima da Mesa Diretora, as sessões no Congresso Nacional, em Brasília, morada do Poder Legislativo no Brasil. A menção de cunho religioso nunca chamou tanto a atenção como agora, quando o País se vê envolto em episódios de intolerância religiosa, ao mesmo tempo em que uma onda de conservadorismo ganha corpo na política.
No dia 10 de junho, um grupo de 400 deputados federais ligados às bancadas Evangélica, Católica e da Bala parou uma sessão que discutia a reforma política para realizar um ato de repúdio contra a Parada Gay de São Paulo, na qual uma atriz transexual encenou a crucificação de Jesus Cristo. A mensagem – uma demonstração cênica da perseguição diária sofrida pelos gays – ofendeu setores mais conservadores da sociedade.
Em resposta, além do protesto, os parlamentares rezaram um Pai-Nosso, dentro do plenário da Câmara. Ocorre que o artigo 5º da Constituição Federal, de 1988, em seus incisos 6, 7 e 8, trata da liberdade religiosa de todas as crenças, sem exceção – daí o termo Estado laico, aquele que respeita e aceita todas as religiões. Todavia, ao não possuir uma única religião oficial o Estado brasileiro se compromete a permanecer neutro. Ou pelo menos deveria.
A recente demonstração de força de setores mais conservadores já demonstra ser muito mais do que uma simples ‘ressaca’ das Jornadas de Junho, como ficaram conhecidas as manifestações que tomaram as ruas do Brasil em 2013. E essas bancadas não vêm se furtando em defender as suas posições, no que alguns especialistas definem como ‘ditadura da maioria’.
“O Legislativo deve primar pelo pluralismo. Há uma maioria eleita pela sociedade, mas é apenas uma parte do todo. Vemos hoje no Congresso vários postos-chave dominados por um grupo majoritário e considero isso um problema grave. É uma ditadura da maioria, que precisa preservar também os direitos e visões da minoria, o que não vem ocorrendo”, disse ao Brasil Post o sociólogo Wagner Iglecias, professor do Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP).
A opinião é compartilhada pelo advogado Rafael Valim, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Castilla-La Mancha (Espanha). “Vermos a Bancada Evangélica defender os interesses de um setor da sociedade é natural, como em qualquer subsistema social. O Parlamento, por natureza, é a expressão das forças sociais. Até aí perfeito. O que não pode é transformá-lo em uma igreja e fazer o mesmo com o Executivo ou com o Judiciário. Os limites são difíceis de serem estabelecidos. O Estado tem que adotar a neutralidade e não é o que se vê quando deputados rezam um Pai-Nosso, por exemplo”.
Em mais de uma ocasião, o presidente da Câmara, deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), deixou claro que a sua gestão iria se pautar por temas “esquecidos há anos” na Casa e que fossem “de interesse da sociedade”. Assim, pautas polêmicas como a maioridade penal reapareceram e contribuíram para uma polarização que já era anterior. Evangélico, Cunha também já declarou que, no Legislativo, “o que vale é a maioria”.
De acordo com análise do cientista política Marco Antônio Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), esse tipo de raciocínio não auxilia em nada em uma gestão mais democrática, seja em qual seja o poder. Na sua opinião, manifestações religiosas no Legislativo “deveriam ser banidas”, sob pena de aumentar uma priorização de determinados grupos – o que já acontece nesta legislatura.
“Ao rezar, eles ultrapassaram o limite do bom senso e inflamaram o conflito religioso. É preciso que o regime da maioria respeite a minoria também. Se você prioriza determinados grupos, você acaba não lidando corretamente com a gestão democrática. É difícil disciplinar isso”, afirmou.
Antes de parlamentar, um indivíduo
Em defesa do Pai-Nosso e das bancadas conservadoras, parlamentares responderam aos críticos dizendo que o Brasil é sim um Estado laico, mas não ‘laicista’ – o que significaria abolir toda e qualquer religião. Para eles, outros grupos religiosos poderiam ter o direito de realizar orações como a vista no dia 10 na Câmara. Tal raciocínio traz à tona o fato de que, antes de político, o parlamentar é um indivíduo que, por si só, possui seus próprios valores e crenças.
“Não tem como separar o indivíduo dos seus valores, que são características arraigadas em cada um. A questão é saber quais são os momentos adequados para determinadas manifestações. Não é só uma questão do cristianismo. Você possui vários códigos morais e a Bíblia é um deles, é importante para a população brasileira. Fomos colonizados por isso e nossa raiz possui valores católicos. Mas concordo que não deveria ser o único parâmetro para qualquer discussão", avaliou Lídice Meyer Pinto Ribeiro, professora de Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
A diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) e doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Garcia, explicou que a Constituição proíbe sim o Estado de ser vinculado a religiões e que manifestações como o Pai-Nosso podem ser classificadas como “excessos condenáveis”, mas considerou que é preciso tomar cuidado ao se vetar qualquer ato de uma bancada que tenha clara ligação com uma determinada crença.
“Não concordo que a Bancada Evangélica não possa se manifestar. Acho que tudo o que houve envolveu a maneira ofensiva como Cristo foi exposto na Parada Gay. Dom Odilo Scherer (arcebispo de São Paulo) definiu bem: ‘quem quer respeito também precisa respeitar’. Vivemos uma crise em todos os setores no Brasil, o que é esperado de uma democracia que ainda engatinha e que nunca teve continuidade no nosso País”, comentou.
A dificuldade de compor a fé e a tarefa de legislar em um único indivíduo político é justamente a barreira a ser enfrentada com muita tolerância, na visão do padre Valeriano dos Santos Costa, diretor da Faculdade de Teologia da PUC-SP. Ele disse considerar “uma estupidez” quem acha ser possível separar a religião do cidadão, porém mencionou que as diferenças precisam ser sempre respeitadas – embora não tenha de, necessariamente, ditar as normas da maioria.
“Vivemos em um mundo intolerante. (Zygmunt) Bauman diz que estamos em um mundo no qual os valores não têm durabilidade, que estão todos a serviço do consumo. Por isso, fica difícil estabelecer parâmetros e, assim sendo, propostas são muitas vezes bem acatadas por um grupo em detrimento de outro. Isso deve ser evitado, visto que há conflitos que levam inclusive a mortes. É preciso construir uma convivência social, de tolerância e respeito”, disse.
A ‘teocracia oficiosa’
A presença de parlamentares conservadores em posições nevrálgicas no Legislativo hoje já traz preocupações para quem não se vê por eles representado. Segundo o censo mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, o número de evangélicos cresceu quase 62% em 10 anos. Eles saltaram de 26,2 milhões, em 2000, para 42,3 milhões em 2010, o que corresponde a quase 25% da população brasileira. Eles só estão atrás dos católicos (123 milhões), mas há espaço para crescer, segundo Wagner Iglecias.
“Tudo o que está acontecendo tem ligação com o crescimento dos evangélicos, que hoje estão sub-representados no Congresso. Há espaço para aumentar essa participação. Com a péssima articulação do governo federal, o baixo clero da Câmara assumiu posições importantes. Esse ruído não aparece quando você vai discutir transporte, por exemplo. Mas é o inverso quando vai debater a educação, na qual há muitos valores embutidos”, afirmou.
O acadêmico da USP teme pelo que o futuro possa trazer, sobretudo com sugestões como a criminalização da ‘Cristofobia’, proposta que já foi encaminhada pelo deputado federal Rogério Rosso (PSD-DF) e que Eduardo Cunha quer levar a plenário o quanto antes. “É uma aberração o que está acontecendo com projetos como esse aí”, completou Iglecias.
Com a ascensão de bancadas religiosas e conservadoras, estaria o Brasil fadado a ver a sua democracia (poder no qual a soberania é do povo) ser desfigurada e transformada em uma teocracia (governo que se submete a alguma religião)? Nenhum entrevistado pelo Brasil Post vê campo fértil para algo tão radical, pelo menos em caráter oficial. Contudo, é possível que o peso de crenças religiosas aumente, criando o que poderia ser definida como ‘teocracia oficiosa’.
“Me preocupa a ascensão e protagonismo dessas religiões em termos políticos. Corremos um sério risco de retrocesso civilizatório com esse movimento em direção ao poder. Para chegar ao ponto de termos uma teocracia seria preciso uma revolução, uma alteração na Constituição e um processo revolucionário. Porém, no Brasil costuma vigorar a ordem formal e depois, em paralelo, a ordem oficiosa. Vejo tudo isso com grande preocupação”, disse Rafael Valim.
Já para o padre Valeriano dos Santos Costa, não há horizonte para se falar em teocracia no Brasil, embora seja difícil prever o que os principais nomes da Bancada Evangélica almejam na esfera política no futuro. “É muito difícil falar disso no contexto atual, assim como é difícil termos decisões políticas que sejam consideradas sem considerar a maioria. É uma questão de composição social e tolerância”, opinou.
Pontos em comum pela paz
O cenário de polarização na sociedade e na política do Brasil dá poucas margens para imaginar um apaziguamento possível e crível em um futuro próximo. Entretanto, há sugestões de caminhos a serem trilhados nesse sentido, caso os diversos personagens queiram buscá-los. Lídice Meyer Pinto Ribeiro diz que as diferenças são conhecidas, mas que a paz entre as religiões e, por consequência os políticos que as representam, precisa buscar congruências.
“Dentro de uma visão mais sociológica, (Émile) Durkheim dizia que os valores morais da sociedade são a base dela e, no caso do Brasil, eles são muito religiosos. Se você fortalece os valores mais profundos, você também fortalece a sociedade. E que valores? É preciso encontrar no diálogo aqueles comuns a todas as crenças, como o amor ao próximo e o de não fazer ao outro aquilo que não se quer para si. Não é fácil trabalhar a convergência em detrimento da divergência, já que o ser humano é egoísta por natureza e cultivar o amor ao próximo é antinatural. Mas não podemos perder a esperança”, analisou.
O diálogo é a base da resolução na opinião de Maria Garcia. A especialista em direito constitucional vê o atual cenário brasileiro como “um processo da democracia”, no qual é refletido o estado de momento das coisas. “Vivemos em um Estado patrimonialista, em que as pessoas se acham ‘donas do pedaço’. É um problema educacional e cultural que precisa ser combatido se quisermos melhorar as relações”.
E como chegamos a um estágio de maior tolerância? A tendência é que o Judiciário seja um personagem fundamental em se fazer cumprir, como sempre, as leis. Como um poder moderador, se espera sempre que suas decisões não se pautem pela fé – fosse o contrário, teríamos mais uma característica comum a regimes teocráticos.
“Há uma mobilização constante para se fazer valer o que diz a Constituição. Se não for suficiente, é preciso levar ao Judiciário, que tem por premissa fazer cumprir a lei. Sem ele (Judiciário), corremos o risco de ver solapado e destruído o Estado de direito que tanto nos custou a construir. Se nada der certo, é esse o caminho”, afirmou Rafael Valim.
Às minorias – também chamadas de forças progressistas –, a palavra de ordem deveria ser “mobilização”, de acordo com Wagner Iglecias. Mas para elas o cenário presente não parece demonstrar isso. “A minoria já não tem muita atenção por uma questão aritmética, e incluo aqui as mulheres e a comunidade LGBT. No Parlamento, por exemplo, você tem ali o Chico Alencar (PSol-RJ), o Jean Wyllys (PSol-RJ), a Maria do Rosário (PT-RS) e só. Eles podem espernear, mas a sociedade também teria de se mobilizar. Confesso que estou sem esperança, esses setores da população que não estão sendo ouvidos parecem estar meio paralisados”, finalizou.