O escritor cuiabano Manoel de Barros morreu nesta quinta-feira, aos 97 anos. Ele foi internado no dia 24 de outubro no Proncor, em Campo Grande (MS), para uma cirurgia de desobstrução do intestino. A causa da morte ainda não foi divulgada. O escritor completaria 98 anos em 19 de dezembro.
Em agosto de 2013, quando perdeu seu segundo filho, o primogênito Pedro, vítima de um AVC (cinco anos depois de João, que morreu num acidente de avião), Manoel de Barros desabou. A filha Martha afirmou, então, que depois da perda, e por causa da idade, “ele estava se apagando como uma velinha”. Uma imagem poética que faz jus a um personagem cuja dedicação aos versos teve o afinco e a simplicidade de quem vê o mundo pela lente da beleza.
Nos últimos anos, por conta da saúde debilitada, praticamente não saía de casa, em Campo Grande, sob os cuidados da filha e da mulher, Stella, com quem estava casado desde 1947. No ano passado, antes de completar 97 anos, ainda escreveu o poema “A turma”, e então se recolheu no silêncio. Não conseguia mais escrever e se alimentava com dificuldade.
Isso não significava que as edições de seus livros estivessem no limbo. Suas obras continuam despertando a atenção dos leitores-admiradores. Em fevereiro, a editora Leya lançou uma caixa com sua poesia completa, composta de 18 livros (incluindo o poema inédito). No final de outubro, o selo Alfaguara (Objetiva) anunciou a contratação da obra do poeta, que começará a ser reeditada no segundo semestre de 2015.
Além disso, dezenas de cartas que o escritor trocou com figuras como o bibliófilo José Mindlin, o embaixador Mário Calábria e o editor Ênio Silveira foram levantadas por pesquisadoras e, podem, no futuro, serem reunidas em livro.
Nascido em Cuiabá em 1916, Manoel era filho do capataz João Venceslau Barros. Viveu por muitos anos em Corumbá (MS), antes de se mudar para a capital sul-mato-grossense.
Ainda criança, passava longas temporadas na fazenda do pai, no Pantanal, onde desenvolveu o olhar para os movimentos da natureza. Engana-se, porém, quem o vê como um “poeta do Pantanal”, rótulo que ele sempre recusou. “A poesia mexe com palavras e não com paisagens”, justificava.
VISIONÁRIO DA HUMILDADE
Manoel foi aluno interno em escolas em Campo Grande e depois no Rio de Janeiro. Quando cursava o internato São José, na Tijuca, descobriu os sermões do padre Antonio Vieira, com quem aprendeu “a beleza de uma sintaxe”.
Jovem estudante de Direito na então capital federal, acabou se envolvendo com figuras comunistas da cena carioca. Mas, depois de romper com o Partido Comunista ao saber que Luis Carlos Prestes deu seu apoio à Getúlio Vargas, desiludiu-se com a política e resolveu viajar.
Passou por Bolívia e Peru (“vivendo como um hippie”, dizia), antes de chegar a Nova York. Na cidade americana, viu “as novidades do mundo” e fez cursos de cinema e artes plásticas. Na volta ao Brasil, conheceu a mineira Stella no Rio de Janeiro e três meses depois já estava casado.
Mesmo sendo considerado um dos maiores autores brasileiros, comparado frequentemente a Guimarães Rosa e ao português Fernando Pessoa, sua reclusão por tantas décadas em terras pantaneiras e a timidez acabaram dificultando a divulgação de sua obra. Nos anos 1980, admiradores famosos de seus versos, como Millôr Fernandes e Antônio Houaiss, começaram a divulgar poemas de Manoel de Barros, ou a citá-lo em colunas de jornais.
O filólogo, que admirava o poeta desde o seu primeiro livro, via nele um “visionário da humildade e solidariedade humanas”. Já Carlos Drummond de Andrade chegou a declarar que o cuiabano era o “maior poeta brasileiro” vivo. O sucesso do filme “Caramujo-flor” (1989), do cineasta sul-matogrossense Joel Pizzini, ensaio visual baseado na vida e na obra de Manoel, também responsável pelo reconhecimento tardio.
Com tantos elogios, Manoel começou a chamar atenção das editoras e do público. Ganhou dois prêmios Jabutis (por “O guardador de águas”, em 1989, e “O fazedor do amanhecer”, em 2002) e teve livros publicados em Portugal, França, Espanha e Estados Unidos. Em 1998, recebeu o Prêmio Nacional de Literatura do Ministério da Cultura, pelo conjunto do seu trabalho.
Sua obra mais conhecida é “O livro sobre o nada”, lançada em 1996, no qual aperfeiçoou o seu autodeclarado “idioleto manoelês archaico” — uma linguagem própria criada para transmitir o desregramento dos sentidos. O autor, contudo, considerava seu primeiro livro, “Poesias concebidas sem pecado”, de 1937, o melhor.
Em 1998, o autor explicou seu processo de escrita em entrevista ao GLOBO:
— Eu estou trabalhando com a palavra e aí me vem uma ideia. E por isso não acredito em inspiração, acredito em trabalho.Mas sei também que transformar palavra em verso, combinar o ritmo com a ressonância verbal, é um dom linguístico. Tenho frases poéticas que são versos. Sei fazer frases.
POPULAR, MAS POUCO AVALIADO
Embora tenha sido por várias vezes o poeta que mais vendeu livros no Brasil, Manoel chegou a comentar que gostaria de também ter sido mais avaliado pelos grandes críticos literários do país, relatou a pesquisadora e professora de Letras da UFMG Lúcia Castello Branco em entrevista ao caderno Prosa, em fevereiro deste ano.
O escritor é objeto frequente da academia, por meio da realização de dissertações e teses, mas, na opinião dela, a crítica deixa a desejar. Em uma reportagem do “Jornal do Brasil” de 1988, na qual era descrito como “o poeta que poucos conhecem”, Manoel explicou os motivos do seu isolamento: “Não tenho boa convivência com a glória. Acho que ela me perturbaria. Preciso muito do escuro”.
No documentário “Só dez por cento é mentira”, lançado em 2008 por Pedro Cezar, ao ser indagado sobre como gostaria de ser lembrado, Manoel ri, coça o peito, diz que a pergunta é cruel; já mais sério, fala que o único jeito é pela poesia. “A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Pra não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”.
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