Kenia Maria é a primeira defensora dos Direitos das Mulheres Negras pela ONU Mulheres Brasil, está entre os 100 negros mais influentes do mundo e será homenageada em Nova York. Quando ela tinha 8 anos, tomou o primeiro tapa na cara de um menino.
O bofetão veio do nada. À toa. Dentro da escola. “Ele começou a me perseguir na hora do recreio, gostava de me bater. Os garotos nem desconfiam, mas eles são educados para isso. Desde cedo, veem a mulher apanhando em casa, na novela, na literatura”, diz Kenia, escritora e atriz.
Seu pai, que era segurança da família do mini agressor, ensinou a filha a reagir a fim de se defender. “Foi quando me tornei feminista”, conta. Nascida em Del Castilho, subúrbio do Rio de Janeiro, onde morou com os pais, os dois irmãos e outras seis famílias em um mesmo terreno, a carioca logo percebeu que lutar pela igualdade de gênero, apenas, não bastava. Era preciso ir além: combater o racismo. “Na minha família e na minha religião, o candomblé, não existe machismo ou racismo. Meu céu tem deusas. Já o cristianismo é patriarcal. Além disso, Deus, Jesus e os anjos são retratados sempre como brancos”, destaca.
Kenia trabalhou com meninas vítimas de violência, criou uma websérie no YouTube, “Tá bom pra você?”, com o intuito de questionar a falta de representatividade negra na publicidade (em um dos vídeos, ela recria um comercial de margarina, dessa vez protagonizado por uma família negra) e tornou-se a primeira defensora dos Direitos das Mulheres Negras, pela ONU Mulheres Brasil, em 2017.
“Já tem gente se dizendo cansada e com preguiça dessa discussão sobre cor no Brasil, mas isso é se negar a resolver o problema. Em Copacabana, Zona Sul do Rio, onde eu moro, ainda sou confundida com a babá. Quando me coloco no meu lugar de direito, acham que sou uma preta metida e abusada”, afirma Kenia, na mesma semana em que uma advogada negra saiu algemada do 3º Juizado Especial Cível da Comarca de Duque de Caxias (RJ) após discutir com uma juíza branca sobre um caso.
No próximo dia 30 de setembro, a militante, que acaba de lançar o livro infantil Flechinha, o Príncipe da Floresta, com personagens negros (e já tem mais uma obra saindo do forno, além de uma peça de teatro), será homenageada pelo seu ativismo em uma cerimônia em Nova York, nos Estados Unidos. Ela e o marido, o ator Érico Brás, foram listados entre os 100 negros mais influentes do mundo pelo Mipad, organização internacional que aponta os afrodescendentes que fazemm a diferençpa no planeta.
O casal receberá o prêmio junto com nomes como Chadwick Boseman, estrela do filme Pantera Negra, Nbaba Mandela, neto de Nelson Mandela, e a duquesa Meghan Markle. O brasileiro René Silva também está no ranking. Kenia falou ao Universa sobre ser mulher negra no Brasil, os preconceitos velados a que devemos ficar atentos (inclusive você aí que não se considera racista) e sobre como os brancos também podem – e devem – ajudar a estabelecer a igualdade.
Como é o seu trabalho à frente da ONU Mulheres no Brasil?
Eu milito há mais de 20 anos para combater o sexismo e o racismo no Brasil, principalmente na propaganda e na indústria audiovisual. Já viu comercial de absorvente com mulher negra? A gente também menstrua (risos). Nos próximos dias, serei embaixadora do Encontro de Cinema Negro, no Rio. Já palestrei no TEDx em São Paulo e lancei dois livros infantis, com personagens negros, para chamar a atenção para a lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, mas que ainda não é cumprida. Quando a gente fecha os olhos e pensa em uma princesa ou em um super-herói, eles são brancos. Uma das maneiras de promover reparação histórica é construir um novo imaginário. Nenhuma criança nasce racista.
Você se considera uma mulher negra privilegiada?
Eu posso até ter vantagem social por ter uma renda que negros não costumam ter, mas não existe privilégio entre pessoas de cor. O Brasil está entre os dez países mais desiguais do planeta: 70% dos negros estão em estado de pobreza.
Nosso projeto de nação é baseado no extermínio, fomos uma das últimas a abolir a escravidão. Que privilégio posso ter com um sobrenome português, e não africano, porque fui vendida e comercializada? Não sei quem são meus ancestrais. Roubaram a minha herança e a minha história. Que privilégio posso ter em um país onde morre um negro a cada 23 minutos?
As pautas do feminismo negro estão inclusas nas conquistas do feminismo?
O feminismo não contempla a mulher negra. A Lei Maria da Penha fez 12 anos e, enquanto a violência contra a mulher branca caiu 12%, contra as negras aumentou quase 60%. Somos violentadas o tempo todo, inclusive no hospital.
Existe um mito, até hoje, de que mulher negra é mais resistente e não sente dor. Alguns médicos não querem nem dar anestesia. Tive dois filhos de parto natural, morrendo de dor, e ouvi isso. Quem não se comove e não se preocupa com questões está sendo violento também. O número de mulheres negras nas universidades é maior do que o de homens negros, mas, mesmo assim, elas não conseguem chegar ao mercado de trabalho. Nós, pretas, ocupamos apenas 0,5% dos cargos de chefia do país. Na rua, quando vejo cuidadoras negras carregando senhoras brancas, muitas vezes reparo que elas têm a mesma idade. Mas é a branca que está sendo cuidada.
É comum te confundirem com a figura da empregada?
Como sou candomblecista, nas sextas-feiras eu só uso branco, então, em geral, pensam que sou babá. Por eu ser confiante e usar meus cachos soltos, sou no máximo uma babá abusada (risos). Aliás, é comum me acharem esnobe só porque não estou em uma posição de servir e não vou me oferecer para lavar a louça na sua casa. Outras pessoas acham que sou turista, porque esse papel da mulher empoderada não é o da negra brasileira. A própria arquitetura das cidades é racista. Para os brancos, existem várias estátuas e placas de rua. Para nós, no máximo o quartinho de empregada e o elevador de serviço. A literatura só reforça e acaba romantizando isso.
De que forma?
Na obra de Monteiro Lobato, por exemplo, a Tia Anastácia ocupa o lugar pensado pela sociedade para a mulher negra. Ela não tem família, não precisa namorar e está sempre servindo e cuidando dos filhos dos outros. Todo o conhecimento dela é apropriado por alguém que está no topo da pirâmide. No caso, a Dona Benta, que virou a dona das receitas. Hoje, a embalagem da farinha que a gente encontra no supermercado é estampada com a figura da Dona Benta, quando na verdade é a Tia Anastácia que ficava com a barriga no fogão. Já o Gilberto Freyre diz que preta é boa para trabalhar, mulata é para transar e que mulher branca é para casar. O pior é que a sociedade abraçou.
Mulher negra sofre mais assédio?
O assédio e o estupro de mulheres negras eram uma prática normal durante o período da escravidão, quase que oficializada. Hoje, se a branca é estuprada, vira notícia. A preta não. Nós ainda somos mais vulneráveis. A figura da mulata é hipersexualizada. Durante muito tempo, o Rio de Janeiro vendeu cartões postais com fotos das nossas bundas.
O combate à apropriação cultural é exagero ou necessidade?
Necessidade. Hoje em dia é muito legal ser negro contanto que você não seja negro. Está na moda usar dread, turbante, ter uma boca carnuda... Muitas negras, no entanto, nunca usaram batom vermelho para não serem comparadas a animais, a macacos.
Usamos turbante há séculos e fomos apedrejadas por causa disso. Em que momento usar o pano na cabeça passou a ser legal? Por quê? Essa moda é vazia.
Além disso, colocam modelos brancas na passarela desfilando com o acessório de raiz africana, justamente em um momento de tanto debate sobre o preconceito racial. Não é que eu não queira que brancas usem, mas, nesse momento, é importante que sejam as negras a ostentá-lo com orgulho e de cabeça erguida.
Existe racismo entre negros?
Não tem como o negro ser racista, mas ele pode reproduzir comportamentos. A sociedade inteira é ensinada a fazer isso. Quando o negro diz que vai casar com uma loira para "limpar" ou "clarear" a raça, ele está rejeitando o próprio corpo.
Assim como quando a negra usa maquiagem para modelar o nariz a fim de deixá-lo com formato mais europeu ou quando a mãe negra alisa o cabelo da filha. Meu filho ia de black power à escola e os colegas diziam que ele havia sido esquecido no forno. O livro Virou Regra, da Claudete Alves, mostra que a maioria dos negros, quando ascende socialmente, escolhe mulheres brancas. Existe uma ideia pré-concebida de que as negras são inferiores. Assim como existe o estereótipo do negro-favelado-assaltante. Infelizmente, eu mesma vivo um conflito constante de atravessar, ou não, a rua, porque o abismo social no nosso país é absurdo.
O fato de você ter se casado com um homem negro é um ato político?
Nunca assumi relacionamento com homem branco. Quando a gente está procurando um lugar na sociedade, o casamento entre negros é importante, sim, para resgatar a nossa ancestralidade e reestabelecer as famílias de cor. Não sou contra uniões inter-raciais, mas Elisa Lucinda diz que transar com um(a) negro(a) não significa que você não é racista. Acho que ainda não estamos prontos para falar de amor quando ainda há tantas feridas abertas. Quando meu filho começou a pensar em namorar, ele se apaixonava sempre por meninas brancas, que pareciam as princesas dos contos de fadas que ele conhecia. Já uma amiga minha que casou com um homem branco ouviu do marido que ele nunca contrataria um gerente negro para a loja deles. O racismo não tem a ver com o amor, nem com ignorância. Inclusive, é muito praticado por pessoas bem instruídas, que respeitam a moral e pagam seus impostos.
A TV Globo foi recentemente criticada por escalar um elenco de brancos para dar vida a personagens da Bahia. A dramaturgia e a própria história clarearam outros personagens?
Muitas pessoas negras nos foram apresentadas como brancas. Chiquinha Gonzaga, por exemplo. E também André Rebouças, Castro Alves, Aleijadinho... No imaginário de muita gente eles são brancos, porque o negro não pode ocupar um lugar de poder. Nas escolas, ensinam aos jovens que Carlos Drummond de Andrade é cultura, mas o samba e o Carnaval, que são manifestações políticas e culturais da negritude, são apenas entretenimento. Assim como eu gosto de Fernando Pessoa e de Frida Kahlo, os brancos também precisam conhecer o legado de artistas negros. O racista vive em mundo limitado.
Ainda é muito cedo para falar de algum tipo de conquista?
Há cinco anos eu seria vista como uma militante negra raivosa, mas agora vou receber esse prêmio em Nova York. As coisas estão, aos poucos, mudando. Quando fui ao cinema assistir Pantera Negra, vi um menino branco de 12 anos segurando, entusiasmado, o boneco do super-herói negro. No Google, a busca por “cabelos cacheados” superou a procura por “cabelos lisos” pela primeira vez no Brasil. Tivemos um crescimento de 232% na pesquisa de cachos no último ano. Vejo mais meninas negras passando por transição capilar, orgulhosas, exibindo seu black power. Isso é uma conquista que gera muito lucro para a indústria de cosméticos. Conseguimos, pouco a pouco, despertar a atenção das pessoas para a causa. Não estou sozinha. Me atrevo a dizer que a Marielle Franco virou o nosso Martin Luther King. O maior desafio do movimento negro é estar vivo. Hoje, a minha grande luta é não deixar mais nenhuma mulher negra morrer.
Como as mulheres brancas podem ajudar na causa?
É importante ressaltar que o combate ao racismo não é uma cruzada de negros contra brancos. Pelo contrário, todo mundo precisa abraçar o movimento. Como? Tendo mais amigos negros, propondo o debate e a reflexão sobre o tema à professora da escola do seu filho ou sobrinho, contratando mais negros na sua empresa e apoiando medidas como as cotas raciais, que não precisam ser eternas, mas ainda se fazem necessárias. Há pouco tempo, um seminário da ONU em Brasília discutiu o exemplo da Suécia. Eles mostraram como o número de mulheres na política aumentou depois da implantação de cotas femininas. Em suma, é preciso rever privilégios e se incomodar. Incomode-se com a ausência de negros no restaurante e nos espaços de poder. Incomode-se com o “mendigo gato” que foi parar nos jornais porque é branco de olhos azuis e virou modelo. Incomode-se com o segurança do shopping que deixou o morador de rua branco entrar, mas não o negro. Incomode-se.