O médico Drauzio Varella é categórico quando o assunto é a interrupção de gestações. "O aborto já é livre no Brasil. É só ter dinheiro para fazer em condições até razoáveis. Todo o resto é falsidade. Todo o resto é hipocrisia."
Varella critica qualquer enfoque religioso sobre o tema - que voltou ao noticiário junto à epidemia de zika vírus e aos recordes em notificações de microcefalia - e afirma que o cerne da discussão não está na moralidade, mas na desigualdade brasileira.
"Ninguém pode se considerar dono da palavra de Deus, intermediário entre deuses e seres humanos, para dizer o que todos devem fazer", diz. "Muitos religiosos pregam que o aborto não é certo. Se não está de acordo, não faça, mas não imponha sua vontade aos outros."
Uma ação que pede a descriminalização do aborto em casos comprovados desta má-formação deve chegar ao Supremo Tribunal Federal, nos próximos dois meses. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), uma brasileira morre a cada dois dias por conta de procedimentos mal feitos e um milhão de abortos clandestinos seriam feitos no país todos os anos.
"Proibir o aborto é punir quem não tem dinheiro", prossegue Varella, que não acredita que uma eventual descriminalização possa estimular que mulheres busquem o procedimento. Não sou defensor do aborto e ninguém é. Qual é a mulher que quer fazer o aborto? É uma experiência absurdamente traumatizante, uma tragédia. A questão não é essa.", acrescentou.
Também segundo a OMS, cerca de 25 países já registram casos de zika. Apenas Brasil e Polinésia Francesa, entretanto, têm dados comprovando o aumento de casos de microcefalia em recém-nascidos.
"O importante é dar liberdade aos que pensam diferente", afirma o médico. Varella então levanta a pergunta: se a doação de órgãos em caso de inatividade cerebral tem aceitação popular, por que a retirada de um feto igualmente sem atividade cerebral é criticada?
Religiosos e políticos
O médico faz críticas duras a quem argumenta contra o aborto a partir de princípios religiosos.
"O poder das igrejas católicas e evangélicas é absurdo", diz. "Mas não está certo a maioria impor sua vontade. Respeitar opiniões das minorias é parte da democracia. Tem que respeitar os outros, o modo dos outros de ver a vida."
O profissional médico diz que discorda dos que culpam exclusivamente o governo pela epidemia.
"O estado brasileiro falha em muitos níveis. Mas não dá pra colocar a culpa toda no Estado, essa é uma visão muito passiva. Larga-se o pneu com água armazenada, deixa-se a água acumular na calha... Esta culpa é compartilhada, a sociedade tem uma fração importante nessa luta."