No Brasil, o aborto é tratado como crime e tanto a mulher que o praticar, como quem de qualquer forma auxiliá-la poderá ser preso. Mas os rigores da legislação brasileira não impedem que ele seja praticado realizado clandestinamente. A Pesquisa Nacional do Aborto, publicada pela Universidade de Brasília (UNB) este ano, estimou que 1 em cada 5 mulheres brasileiras já fez aborto, sendo que metade delas foi internada devido as complicações causadas pelo procedimento.
No ano passado, o Sistema Único de Saúde (SUS) realizou 2 mil abortos legais. O número de mulheres que foram ao serviço público para se submeter a raspagens do útero - um procedimento conhecido como curetagem, necessário depois de abortos - chegou a 220 mil.
No Piauí a Maternidade Evangelina Rosa realiza cerca de 100 curetagens por mês. Mas esse número não especifica o que de fato foi aborto espontâneo ou aborto provocado, já que este último é crime e não há estatísticas que o definam. No entanto, o número é revelador para questionar de que forma estas mulheres chegam a este ponto, pondo em risco a própria vida, através dos métodos mais dolorosos e perigosos.
Pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP) constatou que, entre 1995 e 2007, a curetagem pós-aborto foi a cirurgia mais realizada no Sistema Único de Saúde (não foram levadas em conta cirurgias cardíacas, partos e pequenas intervenções que não exigem a internação do paciente). Foram 3,1 milhões de curetagens e estima-se que a maioria seja decorrente de abortos provocados.
Segundo Débora Cavalcante, militante feminista do coletivo ?Barricadas Abrem Caminhos?, não adianta tapar os olhos para uma realidade que é patente. ?A criminalização do aborto atinge as mulheres trabalhadoras, as mulheres pobres, que não têm condições de pagar por um aborto seguro, como fazem as mulheres ricas. Criminalizar não é prerrogativa, para que o aborto não aconteça. Assim, se provoca um caso sério de saúde pública e é daí que exigimos que seja feito o debate pelo Estado?, reivindica Débora.
Aborto é permitido em países desenvolvidos
A Constituição Federal brasileira garante, em seu artigo 226, §7º, que ?o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas?. Partindo da lógica do direito de decidir sobre o próprio corpo, o movimento de mulheres tem lutado pela descriminalização do aborto, por se tratar também de uma questão de saúde pública.
Mais de 60% da população mundial vive em países onde o aborto induzido é permitido de alguma forma. No Reino Unido, com exceção da Irlanda do Norte, o aborto é legalizado desde 1967. Assim acontece nos Estados Unidos, Canadá, Europa, e Portugal, país eminentemente católico. Lá, se uma mulher desejar interromper uma gravidez por questões socioeconômicas, poderá fazê-lo sem maiores riscos para sua saúde em um hospital, de forma plenamente legal. Em alguns países o aborto induzido é permito até 24ª semana de gestação, mas há setores que reivindicam uma mudança quanto ao tempo.
Letícia Campos, feminista do coletivo ?Mulheres em Luta? (CSP-Conlutas), traz à luz o debate da descriminalização do aborto sobre o prisma do direito da mulher, como também traz o questionamento das condições da mulher em sociedade. ?O pensamento está na linha de que vivemos uma sociedade que há sobrecarga da produção sobre a mulher. As condições de exercício da maternidade são muito precárias, não temos creches, por exemplo. Temos uma jornada semanal de 40 horas?, problematiza.
A perspectiva tomada neste sentido coloca em questão a necessidade de um sistema de saúde que dê conta de métodos contraceptivos, não apenas numa perspectiva masculina (com as camisinhas masculinas), como também garantir que a mulher tenha o direito de decidir caso os métodos contraceptivos falhem.
Letícia Campos coloca a necessidade de repensar o tema sob outros marcos e reivindica consulta popular. ?Esta é uma questão que passa pela própria condição de mulher em sociedades, inclusive do ponto de vista econômico. Por isso, é preciso ser tratado observando as consequências. O aborto é uma pratica e não dá para se ver a partir de um valor moral. Enquanto fazemos isso, mulheres estão morrendo porque é um problema de saúde pública?, afirma Letícia.
Os países que permitiram o aborto se debruçaram sobre plebiscito e pesquisas. Os movimentos feministas defendem que isso também aconteça no Brasil.
Aborto ilegal traz risco às mulheres
A curetagem é realizada em mulheres que passaram por aborto, espontâneo ou não, mas os danos podem ser seríssimos. Muitas sofrem hemorragias graves, perdem o útero, vão parar na UTI e morrem. O fato faz com que o aborto seja a terceira causa de mortalidade materna no Brasil, atrás apenas dos casos de hipertensão durante a gestação (eclâmpsia) e hemorragias não-provocadas.
De acordo com o obstetra da Maternidade Evangelina Rosa, Francisco Martins, as mulheres chegam ao hospital apresentando sangramento, dores pélvicas, perdas ovulares, entre outros. ?No histórico clínico e exame físico, define-se que o quadro é compatível com ameaça de abortamento, abortamento inevitável, abortamento incompleto complicado ou não por infecção e ou hemorragias?, explica o médico.
Segundo dados da ONU, 200 mil mulheres morrem em cirurgias clandestinas anualmente. Neste sentido, Débora Cavalcante coloca a necessidade de perceber o problema diante do descaso do Estado em relação às mulheres, quando não destina uma política de saúde da mulher de forma mais ampla.
Segundo dado do Ministério da Saúde no último ano, gastaram-se R$ 35 milhões com a internação de mulheres por ocasião de aborto. Os especialistas estimam que sairia mais barato que atender mulheres em risco de morte, caso o aborto fosse legalizado e fosse permitido utilizar um método seguro, diminuindo assim o número de mulheres que morrem por aborto inseguro.