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Fair Play financeiro completa 10 anos com punições raras no Brasil

Implantado em 2015, mecanismo da CBF para punir clubes que atrasam salários tem rara aplicação prática; Palmeiras promete pressionar por mudanças

Comissão Nacional de Clubes em reunião no dia 5 de maio: início de conversas para um novo Fair Play financeiro | Foto: Divulgação CBF
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Quando a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) incluiu, em 2015, uma norma que previa a perda de três pontos por partida em caso de atraso de salários, o objetivo era claro: impor responsabilidade financeira aos clubes e proteger os atletas. Dez anos depois, a regra do Fair Play financeiro se mostra mais simbólica do que prática. Desde então, só dois clubes, Santa Cruz e Sport foram punidos com perda de pontos. Ambos já estavam rebaixados no momento da punição, o que tornou a medida inócua.

"É uma década perdida" resume a advogada Mariju Maciel, com 25 anos de atuação na defesa de jogadores. Segundo ela, o regulamento até sugere boas intenções, mas é praticamente inaplicável. Isso porque a denúncia precisa ser feita dentro de prazos apertados e, na maioria dos casos, pelos próprios atletas, que têm receio de retaliações e da exposição negativa.

Regras engessadas e medo de represálias

Para que um clube seja punido, a denúncia precisa partir de um jogador registrado naquela competição específica, durante ou até 30 dias após seu encerramento. Débitos anteriores ou posteriores não entram na conta. Além disso, é comum que os clubes atrasem salários individualmente, atingindo atletas fora dos planos do treinador, o que reduz a chance de uma denúncia coletiva ou com peso.

"Tu não pode pensar que um atleta, enquanto ainda está dentro do clube, vai prejudicar a própria equipe", explica Mariju.

Mesmo quando a denúncia é feita, o clube ainda recebe um prazo para regularizar os débitos antes de qualquer punição. Isso faz com que a perda de pontos seja raramente aplicada. Em muitos casos, os clubes negociam acordos que são descumpridos posteriormente, sem consequência prática.

Casos isolados e efeito nulo

Além de Santa Cruz (2016) e Sport (2018), outros clubes foram denunciados, como Mogi Mirim, Figueirense, Brasil de Pelotas, Treze e Avaí, mas escaparam da perda de pontos. Na maioria das vezes, bastou comprovar pagamentos após a denúncia ou alegar que os atrasos não estavam relacionados à competição em questão.

O caso do Avaí, em 2021, expõe a fragilidade do sistema. O clube subiu para a Série A, mas devia salários e direitos de imagem a vários jogadores. Houve denúncia, acordo e pagamento parcial (apenas em carteira). O restante da dívida ainda está sendo cobrado na Justiça.

O ex-zagueiro Rafael Moraes, que participou da denúncia, relata a pressão sofrida pelos atletas:

"A torcida esquece que a gente é trabalhador e que tem direito a receber. Invadiram Instagram xingando. O Edílson foi o que mais sofreu, porque era o cara mais conhecido."

Ele conta que o clube prometeu quitar os valores, mas após o primeiro pagamento, parou de cumprir o acordo:

"O sindicato cobrava, mas chegou uma hora que o advogado do Avaí falou: “Pode entrar na Justiça, porque não vamos pagar”.

Leila promete endurecer

A discussão ganhou novo fôlego com a entrada de Leila Pereira, presidente do Palmeiras, nas conversas sobre revisão das regras. Embora o clube não faça parte da Comissão Nacional de Clubes (CNC), Leila foi convidada para os debates e já avisou que pretende cobrar firmeza da CBF:

"Clubes atrasam salários, não cumprem com outros clubes em negociações, e continuam competindo em igualdade. Isso distorce o campeonato. Nós vamos bater forte nisso", prometeu.

A dirigente se junta à pressão por mudanças mais efetivas, num cenário em que até clubes de ponta, como Corinthians, Internacional, Grêmio, Vasco e São Paulo, foram noticiados por problemas de pagamentos nos últimos anos.

Medo e silêncio entre os jogadores

Além da burocracia, outro entrave é o medo. Ronaldo Piacente, ex-presidente e ex-procurador-geral do STJD, confirma que os atletas têm receio de denunciar:

"O que a gente percebia era uma resistência natural. O jogador estava ali, jogando, e preferia não se indispor. Quando era dispensado, já era tarde demais para acionar o tribunal."

Mariju Maciel acrescenta que, embora muitos atletas tenham salários altos em comparação à média nacional, são jovens sem estrutura emocional ou apoio familiar:

"São pobres meninos ricos. Têm dinheiro, mas não têm segurança nem preparo emocional. Isso os impede de agir com firmeza."

Regras existem, mas não funcionam

Apesar da existência dos artigos 21 e 146 do Regulamento Geral de Competições da CBF, que estabelecem punições e condicionam a participação dos clubes ao cumprimento financeiro, na prática, essas normas servem mais como aviso do que como mecanismo eficaz.

Atualmente, o cenário financeiro do futebol brasileiro é menos caótico do que há uma década, com injeção de dinheiro de casas de apostas e venda de direitos de transmissão. Ainda assim, a lista de clubes com atrasos recentes inclui nomes tradicionais como Bahia, Botafogo, Ceará, Fluminense, Santos e Atlético-MG.

O que esperar dos próximos passos?

A CBF promete avanços nos debates em 2025, especialmente com a atuação mais incisiva da Comissão Nacional de Clubes e o protagonismo de dirigentes como Leila Pereira. No entanto, sem mudanças estruturais na aplicação das punições, como tornar o processo mais acessível aos jogadores e reduzir os prazos burocráticos, o Fair Play financeiro corre o risco de completar mais uma década como letra morta.

Enquanto isso, os atletas seguem divididos entre o medo de se expor e o direito de cobrar o que lhes é devido. E o futebol brasileiro, entre a promessa de lisura e a persistência da velha cultura do calote.

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