A violência das torcidas no futebol brasileiro deveria envergonhar o país de Neymar tanto quanto os 7 a 1 da Alemanha sobre a seleção na Copa do Mundo em casa. O Brasil encerra 2014, mais uma vez, como a nação que mais mata por causa de futebol em todo o planeta. Este ano, foram 18 mortes comprovadamente motivadas por rivalidades clubísticas, como atestam números oficiais tabulados pelo professor e sociólogo Mauricio Murad. Seis outras ainda são investigadas. Segundo o comandante do Grupamento Especial de Policiamento em Estádios (Gepe), do Rio, tenente-coronel João Fiorentini, a previsão para 2015 é de mais violência. Com um clube carioca rebaixado (o Botafogo), diz, e os outros três na Série A, nada deve mudar. Para conter a barbárie, os especialistas são categóricos: enquanto os clubes não se envolverem, a barbárie vai continuar.
Apesar de, no discurso, os clubes prometerem não dar mais ingressos para torcidas organizadas, fontes da Policia Militar e da Justiça do Rio garantem que a realidade é outra: prosseguem as facilidades para compra ou doação de bilhetes para as facções organizadas.
Em 2013, as imagens da pancadaria entre torcedores de Vasco e Atlético-PR chocaram o país. Mas, de lá para cá, poucas providências foram tomadas. Todos os 31 acusados estão soltos - dois deles conseguiram autorização da Justiça para assistir a jogos da Copa, e vários estiveram em estádios ilegalmente. Outros muitos voltaram a brigar. A falta de punição é tanta que, de acordo com a pesquisa permanente sobre violência no futebol coordenada por Maurício Murad, 17% dos brigões são reincidentes. Segundo o Ministério do Esporte, apenas 3% dos processos de violência no âmbito esportivo acabam em condenação.
- A gente sabe que a medida cautelar de (o torcedor brigão) se apresentar na delegacia (em dia de jogo) não é eficiente. Porque a punição só é cobrada a longo prazo, quando vai se julgar o processo. Defendo que eles tenham de se apresentar todos no mesmo lugar, onde a policia possa controlar quem está indo ou não ao jogo. A gente também sabe que os clubes ainda dão ou facilitam a compra de ingressos - conta o juiz Marcelo Rubiolli, coordenador do Juizado Especial do Torcedor, do Rio.
Se, no ano passado, a violência no futebol atingiu números recordes - 30 pessoas morreram por causa de brigas de torcida -, os dados deste ano mascaram a realidade. Segundo Murad, a paralisação dos campeonatos nacionais por mais de dois meses por causa da Copa do Mundo ajudou a reduzir a escalada dos números, mas isso não necessariamente significa diminuição da violência. A maioria das mortes é por tiro e espancamento, nessa ordem.
- Embora tenha havido 18 mortes, menos que em 2012 e 2013 (quando houve 23 e 30, respectivamente), constatou-se requinte de violência em alguns casos. O mais agudo foi o do arremesso de dois vasos sanitários, no Estádio do Arruda, por torcedores do Santa Cruz sobre rivais do Paraná Clube - recorda Murad. - A polícia constatou que os dois vasos tinham 15 quilos cada um. Ou foram arrancados dos banheiros do estádio ou levados pelos brigões. Em qualquer das duas hipóteses, como isso aconteceu e ninguém viu?
O professor Maurício Murad prossegue:
- Isso mostra, mais uma vez, o baixo preparo da polícia, a impunidade e a baixíssima fiscalização, já que a maioria das mortes é por tiro.
A pesquisa de Murad revela que, nos últimos cinco anos, a temporada de 2014 foi a única que registrou queda (por causa da Copa, como insiste o professor) nos números de óbitos causados por desavenças de futebol. Há dez anos, segundo o professor, o Brasil era o terceiro país que mais matava por futebol no mundo, atrás de Argentina e Itália. Mas, nesse período, enquanto a violência caiu nesses dois países, aqui houve um crescimento alarmante.
- Os números absolutos podem criar essa ilusão, de que, depois de Joinville, as coisas melhoraram. Mas não. Isso aconteceu por causa da pausa para a Copa. Tivemos 18 mortes, e ainda estudamos as motivações de outras. De nove medidas anunciadas pelo governo depois de Joinville, apenas uma foi executada (o cadastro de torcidas organizadas) - diz Murad.
As outras medidas anunciadas continuam apenas no papel: criação de um guia de procedimento de segurança para atividades esportivas; Juizado de torcedores e delegacias especiais; segurança integrada; qualificação dos estádios; câmara técnica e estatuto da segurança privada nos estádios; e maior responsabilização dos clubes.
É exatamente essa responsabilização dos clubes que os especialistas defendem. Mas, um ano após o anúncio das medidas pelo Ministério do Esporte, com apoio da presidente Dilma Rousseff, não houve qualquer movimento nesse sentido.
O presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), Caio Rocha, afirma que 2014 foi o ano em que mais foram julgados processos referentes à violência dentro dos estádios. Pelo menos entre os que cabem ao tribunal.
- Foram 67 casos de infrações ao Artigo 213, que fala de desordem, arremesso de objetos, vandalismo, atos de violência. Aplicamos, ao longo do ano, em torno de R$ 1,5 milhão de multas, afora partidas com portões fechados e perdas de mando de campo. As punições que cabem ao STJD aplicar, estamos aplicando. Eu não posso dizer que falta interesse dos clubes, mas falta organização. Acho que já poderia ser possível haver estádios no país com organização para coibir vandalismos - acredita Caio Rocha.
O tenente-coronel João Fiorentini, do Gepe-RJ, também afirma que os clubes deveriam ter mais envolvimento no combate a essas facções violentas.
- Apesar de termos registrado brigas pontuais e em número reduzido no entorno do Maracanã, e praticamente nenhuma dentro do estádio, ainda temos torcidas organizadas sendo punidas e brigando em dias que não são nem de jogos. As quatro organizadas principais do Rio não ficam mais de dois meses sem punição. - explica Fiorentini, referindo-se às facções Fúria Jovem, do Botafogo; Torcida Jovem, do Flamengo; Young Flu, do Fluminense; e Força Jovem, do Vasco.
Fiorentini faz uma previsão para 2015:
- Acho que a situação pode ainda ser pior. O resultado dos times em campo influencia nisso também. Com o Botafogo rebaixado, e Flamengo, Fluminense e Vasco passando por crises, temos a previsão de um ano violento. Uma coisa é certa: estamos dialogando com as torcidas organizadas, mas, enquanto os clubes não comprarem essa briga, fica difícil...
Números
2010: 12 pessoas morreram por causa de futebol no Brasil.
2011: 11 pessoas tiveram a morte comprovadamente ligada a rixas de torcidas.
2012: 23 pessoas foram mortas por torcerem por times diferentes. Nesse ano, a violência do futebol dobrou.
2013: 30 pessoas foram assassinadas por torcedores rivais. Foi o maior número da história.
2014: 18 pessoas morreram por causa de futebol no Brasil. A redução se deveu à pausa para a Copa do Mundo.