Você lembra o que fazia quando tinha 10 anos? Brincava de boneca, jogava bola, se lambuzava com terra, precisava sua mãe te gritar na rua pra você parar de brincar e ir pra casa. Já imaginou uma realidade em que, na infância, a rotina acontece quase toda dentro do celular, e as brincadeiras de rua viram só vídeo de referência ou uma trend pra conseguir views?
Foi esse choque que movimentou a internet nas últimas semanas. Um vídeo publicado por Felca, de 27 anos, escancarou o problema da adultização de crianças nas redes e a forma como conteúdos aparentemente inofensivos acabam se tornando alvo de pedófilos. Ele não apenas apontou o problema, mas também cobrou responsabilidade das plataformas que permitem, e até monetizam, esse tipo de exposição.
A repercussão foi imediata. Em poucos dias, milhões de pessoas assistiram ao vídeo, que ganhou espaço nas redes e na TV. Mas junto com o apoio, vieram ataques e ameaças. Felca, no entanto, devolveu com firmeza: quem precisa ter medo não é quem denuncia, mas quem se aproveita da inocência de crianças.
Um problema que não cabe em um único caso
O debate ganhou ainda mais força com a prisão do influenciador Hytalo Santos e do marido, Israel Nata Vicente, em São Paulo. A investigação apura crimes como exploração sexual infantil e tráfico de pessoas. As acusações são graves e escancaram um sistema de aliciamento que vai muito além de likes ou seguidores.
Mas reduzir essa discussão a um único nome seria injusto. Pesquisas recentes mostram que o problema é global: só no Brasil, a SaferNet registrou mais de 1.600 denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil em apenas uma semana de agosto deste ano, mais que o dobro do mesmo período do ano passado. Esse crescimento não significa necessariamente mais casos, mas mais gente percebendo e denunciando.
E aqui está o ponto central: a adultização não acontece só quando criminosos exploram. Ela também aparece em vídeos de “brincadeiras” em que crianças repetem falas adultas, participam de desafios sexualizados ou são expostas por familiares em situações que viralizam. O público, muitas vezes, naturaliza.
A infância encurtada pela tela
Estudos do Cetic.br mostram que a idade média para ter o primeiro celular no Brasil já está abaixo dos 9 anos. E se quase todas as crianças estão conectadas, o risco cresce junto. O UNICEF alerta que a internet é espaço de direitos, mas também pode ser ambiente de violência, chantagem e exploração.
Especialistas em psicologia e direito digital têm repetido: a adultização retira da criança a chance de viver etapas próprias da infância. Mais que isso, cria terreno fértil para que abusadores se aproximem, muitas vezes de forma silenciosa, por meio de comentários, mensagens privadas e convites que parecem inocentes.
Até onde vai a responsabilidade?
Esse debate também provoca outra questão: até onde vai a responsabilidade das plataformas? Como ainda existem vídeos que monetizam a exposição de crianças em contextos sexualizados? Por que o algoritmo insiste em recomendar esse conteúdo para um público que não deveria existir?
Do outro lado, está o papel das famílias. Controlar totalmente o acesso pode ser impossível, mas ignorar os riscos é ainda mais perigoso. Filtros, diálogos e acompanhamento são ferramentas que precisam andar juntas. É preciso estar atento a sinais de manipulação: pedidos de segredo, chantagens, ou contatos estranhos em jogos e redes.
Mais que números, vidas
Por trás das estatísticas, há histórias reais. Cada denúncia feita à SaferNet, cada investigação aberta pelo Ministério Público, representa uma criança que pode estar sendo protegida. ou que já foi ferida pela exposição.
A mobilização que começou com um vídeo no YouTube mostra como a indignação coletiva pode transformar o debate em ação. Mas também deixa claro que não basta se chocar por alguns dias: é preciso manter a pauta viva.
Felca resumiu bem quando disse que não se trata dele, mas da causa. No fim, a luta contra a adultização e a pedofilia online não é de um influenciador, de uma organização ou da Justiça. É de todos nós, pais, responsáveis, educadores, jornalistas, plataformas e sociedade.
E quando não é sexualização?
Nem sempre o impacto da internet na vida de crianças e adolescentes aparece em forma de exposição sexual. Em outros momentos, o problema está no quanto esse espaço pode se tornar um terreno de fuga, isolamento ou até de incentivo a comportamentos violentos.
Em julho um caso que aconteceu no Rio de Janeiro chamou atenção. Um adolescente de 14 anos matou os próprios pais e o irmão de 3 anos. A investigação apontou que a motivação estava ligada a um relacionamento virtual que ele mantinha havia mais de seis anos com uma garota de 15 anos, conhecida durante uma partida de jogo online. Toda a premeditação aconteceu no ambiente digital, inspirada em conteúdos de jogos e vídeos que os dois consumiam.
Esse caso mostra que existe uma outra camada de risco: crianças e adolescentes estão aprendendo a lidar com afetos, frustrações e conflitos dentro de um universo que nem sempre separa realidade e ficção. O virtual pode ser espaço de amizade, aprendizado e descoberta, mas também pode distorcer vínculos, alimentar obsessões e criar mundos paralelos onde a violência parece uma saída.
E aqui fica a reflexão: será que estamos prontos para entender a internet como parte da vida afetiva e emocional das crianças? Quantas conversas deixamos de ter em casa porque acreditamos que “eles estão só jogando”? Quantas vezes confundimos silêncio com segurança, sem perceber que por trás da tela pode existir um universo inteiro que molda desejos, medos e decisões?
Se no caso da adultização o risco é encurtar a infância, quando falamos de relacionamentos virtuais extremos o perigo é outro: transformar a adolescência em um território sem mediação, onde sentimentos se misturam com conteúdos consumidos sem filtro.