Quando o avião em que estavam fez um pouso forçado em meio à selva peruana, a lua de mel dos sonhos de Holly Fitzgerald e do marido Fitz pela América do Sul logo ganharia ares de tormento. Era o início de uma aventura que culminaria com os dois "ilhados" em uma balsa improvisada, por quase um mês, no rio Madre de Dios, à mercê de tempestades, piranhas e jacarés.
Sem nada para comer, a não ser lesmas e sapos, Fitz chegou a ficar à beira da morte.
O relacionamento, a sanidade mental e a força física do casal seriam testados ao limite absoluto.
Em entrevista ao programa de rádio Outlook, da BBC, Holly conta como eles sobreviveram a tamanha provação.
Holly Fitzgerald e o marido Gerald, mais conhecido como Fitz, estavam casados havia menos de dois anos quando partiram em uma viagem de lua de mel de um ano ao redor do mundo, que tinha como ponto de partida a América do Sul.
Era início da década de 1970, e o casal americano tinha pouco mais de 20 anos na época — ambos estavam perdidamente apaixonados e em busca de aventura.
"Estávamos muito animados. Economizamos durante um ano. Nós dois trabalhávamos, ele era repórter de um jornal e eu era assistente social", relembra Holly.
Fitz havia combinado com o editor do jornal que escreveria artigos semanais sobre a viagem, enquanto Holly seria responsável pelas fotos.
No fim do ano de 1972, eles haviam juntado dinheiro suficiente e estavam prontos para embarcar.
No entanto, só após quatro meses viajando pela América do Sul, a verdadeira aventura do casal começaria de fato.
Eles estavam na cidade peruana de Pucallpa, quando decidiram conhecer a Bacia Amazônica.
Para isso, o plano era voar até Puerto Maldonado, também no Peru, onde pegariam um barco comercial para descer até Riberalta, na Bolívia. De lá, seguiriam de carona para o Brasil.
Mas estavam com o cronograma apertado: tinham dez dias para chegar a tempo de pegar a embarcação, só haveria outra três meses depois.
Pouso forçado
Eles decolaram então em um avião bimotor militar antigo, modelo DC-3, rumo à Bolívia.
"Estávamos muito longe da civilização, não havia casas lá embaixo, apenas árvores sobre árvores, uma ondulação de árvores, quase como um oceano verde", descreve Holly.
Mas a contemplação da vista aérea da floresta logo seria interrompida:
"O avião ia fazer uma parada em uma aldeia no caminho do nosso destino e, à medida que descia, começou a tremer, a balançar... estava descendo muito rápido. Eu perguntei: 'Fitz, esse avião não está indo rápido demais?'"
A aeronave, com 13 pessoas a bordo, acabou fazendo um pouso forçado no meio da selva.
"Quando o avião bateu no solo, era tudo lama, uma grama lamacenta, e ele parecia não conseguir frear. Havia uma península de água em volta, e ele colidiu nas árvores da floresta."
"A asa quebrou, e o trem de pouso ficou todo amassado", acrescenta.
A foto no início desta reportagem, tirada por Holly, retrata o momento logo após o acidente.
"Foi muito assustador, mas eu estava com minha câmera e pensei: 'Preciso tirar uma foto porque ninguém vai acreditar nisso'."
"Eu recuei um pouco e disse: 'Fitz, para um minuto, vou tirar uma foto'. E ele falou: 'Não, isso pode explodir a qualquer momento, temos que ir embora'. Mas ele parou, e parece bem atordoado, chocado na foto."
Colônia penal
Naquela época, não havia telefone celular, tampouco internet. Só restava a eles seguirem então os outros passageiros em busca de ajuda, embora não tivessem a menor ideia para onde estavam indo.
"Atravessamos um riacho em um barco a motor, quatro pessoas de cada vez, e começamos a caminhar por uma trilha no meio da selva, uma trilha lamacenta, porque era estação de chuva."
"Pensamos que íamos para uma aldeia, mas acabou que era uma colônia penal", revela.
Era a Colônia Penal Agrícola del Sepa, localizada em meio à selva peruana.
"Os guardas foram muito simpáticos, deixaram a gente dormir no alojamento deles."
"Era um campo aberto, como um campo de futebol, e eles diziam que os presos não tinham para onde fugir. Portanto, não havia grades, tampouco muros", relata.
O plano era esperar alguns dias até a grama secar para pegar então outro avião até Puerto Maldonado.
Quando a lama secou, eles prosseguiram viagem um tanto quanto apreensivos. Mas, desta vez, sem surpresas no voo.
"Quando pousamos, todos aplaudiram, porque estávamos muito felizes por estar no chão novamente.
A jangada
No entanto, haviam chegado tarde demais para pegar o barco — e o próximo só passaria três meses depois.
"Ficamos arrasados. Estávamos naquela cidade pequena, era estação de cheia, tinha lama até meu tornozelo, simplesmente não era onde queríamos ficar por meses esperando um barco."
Até que um morador local deu uma alternativa:
"Ele disse: 'Vocês poderiam pegar uma jangada, que é o que as pessoas aqui fazem. Todos nós aqui usamos jangadas'."
Holly logo se entusiasmou com a ideia, mas Fitz estava reticente.
"Nós não conhecemos esse cara. Por que deveríamos confiar no que ele disse?", questionou.
Não demorou muito, no entanto, para ela convencer o marido.
Eles construíram então uma jangada, a qual batizaram de Pink Palace (Palácio Rosa), uma plataforma com quatro toras de madeira amarradas e uma tenda de plástico rosa em cima.
E zarparam pelo rio Madre de Dios, que vai do Peru até a Bolívia, em direção à cidade de Riberalta, a cerca de 800 quilômetros de distância. Uma viagem prevista para durar cinco dias e cinco noites.
A princípio, parecia que seria um passeio idílico.
"Era lindo e relaxante. É claro que, no fundo havia aquele pensamento: Uau, não há absolutamente ninguém por aqui. Mas também tinha uma parte maravilhosa e encantadora de borboletas chegando e pousando na gente, o chilrear dos pássaros..."
Para se distrair, Holly conta que eles chegaram a dançar sobre a jangada.
Tempestade
Mas a calmaria estava prestes a acabar. No meio da quarta noite, eles foram atingidos por uma forte tempestade de raios e trovão.
"Era muito alto e assustador. Eu acordei e gritei: 'Fitz, tempestade, tempestade'", relembra.
"Ele acordou e olhou para fora da tenda, claro que estava escuro, mas com os relâmpagos você podia ver que a água estava turbulenta."
De repente, uma árvore caiu sobre a embarcação. Não só rasgou o plástico da tenda, permitindo que a água entrasse, como deixou Holly presa embaixo do tronco.
Se não bastasse, ela ainda foi picada por uma legião de formigas-lava-pé que estavam na árvore e subiram sobre seu corpo.
"Parece que você está pegando fogo", descreve.
"Eu gritava para Fitz me ajudar a sair. Meu cabelo estava todo emaranhado nas raízes da árvore."
"E ele dizia: 'Você consegue, você consegue'. Fui capaz de me libertar das raízes, e nós dois tivemos que empurrar aquele tronco enorme para fora da jangada porque estava afundando o barco."
Luta pela sobrevivência
Na manhã seguinte, a tempestade deu lugar a um lindo dia de sol. Mas com o novo dia, veio também uma terrível constatação: a maior parte da comida que tinham havia caído no rio em meio ao temporal.
"Não havia sobrado quase nada."
"Só tínhamos agora uma caixa com uma lata de atum, um pouco de sopa de ervilha em pó, um pouco de açúcar e café instantâneo. Era isso", enumera.
E, infelizmente, agora eles não podiam mais simplesmente continuar navegando rio abaixo conforme haviam planejado.
A tempestade havia mudado o curso da jangada para um afluente do rio — e eles estavam "encalhados" em uma planície alagada, sem terra à vista.
Era basicamente um pântano, sem qualquer corrente para levá-los de volta. Nadar no rio infestado de piranhas e jacarés tampouco parecia uma opção.
Sem ter para onde ir, se tornaram alvos fáceis para os animais selvagens que viviam na floresta.
"A gente podia ouvir os animais, principalmente durante noite. Havia rugidos, alguns rugidos pareciam de onça. E, embora a terra estivesse submersa, sabíamos que elas podiam subir pelas árvores."
"Sabíamos que havia ainda anacondas e jacarés."
Holly e Fitz fizeram uma tentativa de escapar do pântano tentando remar de volta para o rio principal. Mas uma tempestade os impediu, além do fato de que a jangada era grande demais para navegar entre as árvores alagadas.
Com o passar dos dias sem comer, eles começaram a perder peso rapidamente, e a ficar cada vez mais fracos.
"Foi assustador ver o quão rápido isso poderia acontecer com a pessoa que eu amava", diz Holly.
O objetivo de chegar à Amazônia brasileira deu lugar a uma verdadeira luta pela sobrevivência. E, contrariando o conselho dos moradores locais para não entrar na água, eles não tiveram escolha a não ser tentar nadar para fora do pântano.
"Cada um de nós tinha um pedaço de madeira, e nós nadamos o mais longe que conseguimos."
"Nadamos o dia todo, do amanhecer ao anoitecer. Éramos jovens e fortes, mas não comíamos fazia quase duas semanas, estávamos realmente ficando fracos... e não havia terra para descansar, foi horrível", recorda.
Eles estavam à beira do limite físico e psicológico.
"Num dado momento, Fitz começou a gritar com Deus. Ele estava com o punho levantado, apenas gritava... E eu pensei: Meu Deus, ele está desmoronando."
"Ele estava furioso e dizia: 'Por que você me deixou sobreviver ao Vietnã? Fui ferido duas vezes, por que sobrevivi à meningite no quartel? Quase morri. E agora estamos aqui. Vamos morrer nesta selva abandonados por Deus. Por que isso está acontecendo? Por que você está deixando isso acontecer'?"
Foi quando decidiram voltar para a jangada e começar a procurar comida, o que não haviam feito até então. E foram pequenos sapos, caracóis e lesmas que não deixariam o casal morrer de fome.
Por volta do 23º dia, Holly teve uma epifania.
"Eu acordei e pensei: Céus, eu quero ter um filho. Acordei Fitz, e contei para ele. Não sei se ele achou que era meio fora de hora, então eu disse: 'Não aqui, mas no futuro. Vejo que teremos uma família'. E ele disse: 'Ah, isso seria maravilhoso, claro'."
"E aquilo simplesmente deu um novo significado, renovou a esperança de que sairíamos dali. Mal conseguíamos nos mover, apenas engatinhávamos pelas toras, e ainda assim seguiríamos em frente porque queríamos aquele bebê", afirma.
Mas, no 31º dia, Holly enfrentaria mais uma provação.
Quando acordou, ela não conseguiu despertar o marido — e receou que ele tivesse morrido enquanto dormia.
"Ele estava deitado tão imóvel, que eu não conseguia vê-lo respirar. Ele estava muito frágil. Eu chamava: 'Fitz, Fitz'. E ele não respondia."
"E então, quando ele atendeu, eu comecei a chorar. Estava tão aliviada. Ele estava vivo!"
O resgate
O que eles ainda não sabiam é que aquele também seria o último dia do martírio.
Pouco tempo depois do susto, Fitz avistou dois homens em uma canoa — e usou a pouca força que lhe restava para gritar por socorro.
"Descobrimos que (os dois homens) eram de uma tribo local e se chamavam Rocque e Silveiro. Duas pessoas maravilhosas, eles salvaram nossas vidas."
Os indígenas colocaram o casal na canoa em que estavam, e os levaram até sua aldeia.
"Demorou algumas horas, eles cortaram caminho pela mata, o que a gente não conseguia fazer com a jangada, mas com a canoa dava para navegar pela floresta inundada, e eles iam cortando a vegetação com um facão" diz ela.
Quando menos esperavam, estavam finalmente de volta ao rio Madre de Dios.
"Eu pensava: Eu vou beijar aquele rio se voltar a vê-lo, então é claro que eu beijei. Levantei um pouco de água com a mão e dei um beijo."
Ao chegar na aldeia, a primeira providência dos nativos foi alimentar o casal.
"Primeiro, comemos laranjas maravilhosas, chamadas laranjas de Santo Domingo."
"Mas quando a professora apareceu, ela tirou a laranja da gente e jogou num saco, presumo eu por causa da acidez, é claro que nosso estômago não aguentaria."
"Ela fez então uma canja de galinha, peixe e um pouco de arroz..."
A condição física do casal era alarmante — ambos haviam perdido muito peso, estavam extremamente desnutridos e desidratados.
"O médico que nos atendeu disse que Fitz talvez não tivesse nem um dia de vida, eu talvez tivesse alguns dias."
Os dois precisaram ficar hospitalizados por 17 dias até se recuperarem totalmente.
"Depois de alguns dias, eu conseguia andar até o quarto dele", diz Holly, que estava na enfermaria feminina, e Fitz na masculina.
"Antes disso, nós trocávamos mensagens por intermédio das auxiliares de enfermagem que levavam nossos bilhetes junto com a comida, para lá e para cá."
Após receberem alta, eles decidiram voltar para casa, em Connecticut, nos EUA, onde foram recebidos pela família no aeroporto.
"Demoramos alguns meses para fazer um balanço de tudo que havíamos passado."
"Víamos que ninguém conseguia compreender, até tentavam entender, mas era muito difícil de explicar. E a gente tentava explicar de uma forma um pouco mais divertida, mais leve, porque era tão doloroso, não só para as pessoas ouvirem, como para a gente contar", desabafa.
Uma parceria de 50 anos
Atualmente, Holly vive com Fitz no Estado americano de Massachusetts. Eles têm duas filhas — e cinco netos.
E todos os anos, desde que foram resgatados, eles celebram uma tradição um tanto quanto original, que envolve laranja, peixe e arroz.
"Fazemos essa refeição até hoje todo dia 16 de março , porque foi neste dia que Rocque e Silveiro nos salvaram. Chamamos de dia da jangada. É um agradecimento."
Você pode se perguntar como Holly consegue se lembrar de tantos detalhes depois de tanto tempo. É porque ela escreveu um diário durante toda temporada na floresta. Mas levou muitos anos para fazer algo com ele.
Finalmente, em 2017, ela escreveu um livro para contar a experiência na selva, chamado Ruthless River ("Rio Implacável", em tradução livre).
Em dezembro deste ano, o casal vai completar 50 anos juntos, uma relação que saiu fortalecida da provação pela qual passaram na floresta.
"Eu diria, da minha parte, que (a aventura na selva) serve sempre de comparação para outras coisas que vivemos: 'Bom, ele sobreviveu à jangada, então podemos lidar com essa doença ou com o que quer que aconteça'", avalia.
"Lembramos que passamos por isso juntos, e podemos passar por outras coisas."