Entrar num site de paquera pode ser uma forma de encontrar o parceiro dos sonhos, mas a cessão de informações pessoais pode gerar um pesadelo. Perfis, que em tese deveriam ser usados apenas pela plataforma onde o cadastro foi feito, estão à venda livremente na internet. Não na deep web ou em redes secretas, mas num site aberto, operando legalmente nos EUA. Qualquer pessoa com um cartão de crédito pode comprar pacotes com milhões de perfis por algumas centenas de dólares.
Para denunciar a prática, o coletivo ativista berlinense Tactical Tech, junto com a artista e pesquisadora Joana Moll, comprou um pacote com um milhão de perfis no site USDate.org por US$ 136. O material continha informações, incluindo fotos e e-mails, de pessoas de vários países, incluindo 10.208 brasileiros. Para checar a veracidade dos dados, os ativistas selecionaram aleatoriamente algumas dezenas de perfis, e todos foram encontrados no site Plenty of Fish (POF).
— Não era uma combinação de fotos roubadas da internet, com dados falsos. A gente checou algumas dezenas de perfis, e eles eram reais, idênticos aos cadastrados no site — conta a brasileira Raquel Rennó, que atua na Tactical Tech há um ano e meio. — Estão no pacote as fotos colocadas nos perfis abertos e e-mail, além de dados sobre nacionalidade, data de nascimento, orientação sexual, religião, se fuma ou bebe, nível de escolaridade, se tem filhos, se procuram um encontro casual ou algo sério, entre outras.
Os dados foram adquiridos em maio de 2017, mas os resultados do projeto foram tornados públicos apenas neste mês. Como o USDate não informou aos compradores a origem dos perfis, os pesquisadores começaram a busca pelos “parceiros” listados no site. Sem sucesso, eles examinaram os metadados dos arquivos das imagens e identificaram o POF. A partir daí, foi iniciada uma busca das informações adquiridas entre os cadastrados no POF e, bingo, os perfis estavam lá.
O POF foi criado em 2003, em Vancouver, no Canadá, e em julho de 2015 foi adquirido pelo conglomerado Match Group, dono de várias marcas do segmento, como Tinder, OkCupid e Twoo. O site do Match Group informa que o POF é uma “das maiores companhias de encontros on-line com 150 milhões de usuários registrados e 65 mil novos cadastros por dia”.
A Política de Privacidade do POF — aquela que ninguém lê — informa que os dados dos usuários podem ser compartilhados com outras companhias do Match Group em duas situações: no processamento técnico de informações, como “hospedagem de dados e manutenção, atendimento ao cliente, marketing e publicidade direcionada, finanças, melhor entendimento sobre o comportamento do usuário, segurança de dados e combate ao spam e à fraude”; ou para “aumentar as chances” de se encontrar um parceiro. O documento também abre espaço para o compartilhamento das informações com terceiros, mas apenas com consentimento.
Empresa nega a venda de cadastros
Em comunicado, o Match Group afirma que “nenhuma propriedade do grupo já comprou, vendeu ou trabalhou com o USDate”. “Nós não vendemos informações pessoais identificáveis dos usuários e nunca vendemos perfis para qualquer organização. Qualquer tentativa do USDate de nos colocar como parceiros é notoriamente falsa”.
O caminho das informações do POF para o USDate não está claro, mas pode passar por um modelo de replicação usado pela segmento. Os sites de paquera não surgem do nada, eles compram pacotes de perfis de outras empresas já estabelecidas para atrair novos usuários. Entre os “parceiros” listados pelo USDate está uma empresa especializada nesse tipo de serviço.
— Eles chamam de pré-população — explica Raquel. — Os sites já são criados com milhões de perfis, de pessoas que nem sabem que estão lá, mas servem de iscas. Pela lógica desses sites de paquera, a conexão só acontece se houver uma resposta da pessoa contatada. Como esses perfis não estão conectados, eles apenas não respondem. Podem gerar frustração, mas é difícil que os usuários percebam.
'Impactos na vida pessoal'
O uso de perfis para a criação de novos sites pode parecer inofensivo, mas o fato desses dados pessoais estarem à venda, para qualquer pessoa na internet, pode ter consequências trágicas. O pacote adquirido pelos ativistas tinha 630.426 homens e 310.235 mulheres. Dessas pessoas, 60.078 se identificavam como homossexuais e 1.783 como bissexuais. 127.503 se identificaram como fumantes e 246.679 disseram fumar socialmente.
— Existem países que consideram a homossexualidade crime. Essas pessoas podem ser presas ou sofrerem preconceito apenas por terem preenchido um cadastro num site de namoro — alerta a ativista. — Com o cruzamento de informações, a indústria da saúde pode aumentar o preço do plano de saúde dos fumantes. Pessoas casadas que estão procurando um caso podem ser identificadas. É inconcebível entrar num ambiente para namorar e sofrer impactos na vida pessoal.