Mãe, cristã, advogada, “filha” da ditadura e envolvida em projetos sociais, Talita Menezes foi às ruas com o filho Rafael, de 15 anos, em uma manifestação política. Na testa, eles traziam os dizeres: “mãe de viado” e “viado”, respectivamente. Uma foto dos dois viralizou e foi alvo de comentários odiosos ao mesmo tempo de elogios de pessoas comovidas pelo gesto. Aqui ela conta sua trajetória e como se uniu à luta do filho para apoiar sua sexualidade e enfrentar o preconceito.
Confira o relato completo de Talita:
Sou advogada civilista, atuo há 22 anos, principalmente na área de direito de família. Eu sou uma pessoa que acredita muito nas famílias. Creio que, mesmo com a dissolução de um casamento, a família persiste. Desde 2004, sou professora universitária. Atualmente, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Rafael nasceu em 2002 e Felipe nasceu em 2006, e essa atividade de ser mãe se misturava com a atividade de ser educadora.
Eu venho de uma família relativamente pobre. Com essa coisa da ditadura, minha mãe estava prestes a terminar o ensino médio e acabou saindo antes com medo e tal, era muito jovem. Então ela não tem o ensino médio completo. O meu pai só teve o ensino médio. Eu sou uma das poucas pessoas da minha família que conseguiram ter uma faculdade. A minha mãe lutou muito para criar a gente e sempre me criou no sentido de: olha, mulher tem que ser guerreira. Eu sempre fui muito frágil, meu apelido quando era criança era Talita Chorona. Eu continuo sendo Talita Chorona, mas aí eu vou à luta, faço o que tenho que fazer.
Quando o Rafael falou, no sábado, para a amiga dele colocar escrito “viado” na testa dele, a minha primeira reação foi: “Rafael, não, filho, para que você vai colocar isso aí?”. Ele disse: “Mãe, nós estamos indo para uma manifestação.” E aí ele tem todo o discurso. Eu perguntei: “E por que não 'gay', em vez de 'viado'?”. E ele: “Porque é de 'viado' que me xingam, é de 'viado' que me chamam. Eu estou me apropriando disso. Quando eu coloco na minha testa 'viado', eu tiro o poder deles. Eu estou tirando a palavra da boca dessas pessoas.” E aí eu não tenho argumento, né? Porque eu não vou ensinar o meu filho a ser covarde, a não se manifestar. Eu não sei se importa, mas eu tenho um histórico familiar. Meu pai foi preso em 1973 e solto em 1979.
Eu sou filha da ditadura. Os meus pais se casaram dentro da igreja e eu, com um aninho, estou nas fotos, dentro de uma capela de um presídio. Aprendi a nadar no presídio, ele foi preso com o Nelsinho Rodrigues (filho do dramaturgo Nelson Rodrigues), eu me lembro de algumas pessoas, e ele acabou se convertendo dentro da cadeia, acabou virando evangélico, pastor e foi correr o mundo como missionário. Mas a gente traz no sangue esse ímpeto de resistir.
O meu filho, como todo adolescente, tem aquela vontade de se colocar. Ele sempre foi assim, desde pequeno que faz questão de dizer que é gay. E eu e o meu marido, como pais preocupados, queríamos sempre preservá-lo, poupá-lo, porque pensávamos o seguinte: é uma criança, como é que os adultos vão receber essa notícia? Porque o problema nem seria propriamente as outras crianças, os outros jovens, mas os pais, com medo dos seus filhos se relacionarem com um menino gay. A gente ficava temeroso de que ele ficasse falando para as pessoas, mas não adiantava nada, porque ele chegava e falava.
Ele foi de uma escola, antes dos 10 anos, em que teve muitos problemas por causa disso, porque ele era chamado de 'viadinho' e outras palavras, e foi muito difícil. E nós trocamos de escola num momento decisivo, em que ele estava indo para o sexto ano, e ele chegou no colégio novo e falou: “Olha só, eu queria dizer pra vocês que eu sou gay (risos).” E eu: “Rafael, poxa vida, por que você não esperou um pouco para contar?”. No início foi um burburinho só, depois todo mundo se acostumou e, com o tempo, [ficou] normal. Um professor ou outro tentava dizer para ele qual era o melhor comportamento, depois dele maior eu soube de professor que falava para ele “andar direito”, então a escola não foi exatamente o melhor lugar do mundo para ele naquela época. Ele sempre teve essa postura de falar, nunca teve vergonha das outras pessoas.
Quando ele me contou que era gay aos 10 anos de idade, ele chorava muito. A gente estava deitado na cama, ele chorava e disse: “Tenho uma coisa para te contar.” Eu fiquei preocupadíssima, né? E ele: “Mãe, eu sou gay.” E eu falei: “Tá, mas por que você está chorando tanto, é por causa disso?”. Naquela hora, minha preocupação era tirar o sofrimento dele, ele sofria! E aí eu falei: “Filho, olha só, você não é gay, você é criança e, como criança, não deve se preocupar neste momento em definir essas questões, pelo contrário, permita-se ser livre, se conhecer, conhecer pessoas.” Então, eu acho que, quando ele recebeu essa acolhida, ele se sentiu muito fortalecido. Da minha parte, sempre foi muito bem aceito, [mas] sempre tive medo da reação das pessoas. Já tive gente me perguntando: “Mas você queria ter um filho gay?”. Eu falei: “Olha só, eu não me importo que ele seja gay, mas no mundo em que a gente vive, nenhuma mãe quer. Mas não é porque tenha problemas com o fato de que o filho é gay, não quer porque não quer que ele sofra. Quero saber qual é a mãe do mundo que não quer que o filho passe a vida inteira só de felicidade. É surreal, é anormal, isso nunca vai acontecer (risos), mas eu não conheço nenhuma mãe que fale: “Sabe, eu estou louca para que o meu filho passe por bastante pedreira, porque ele vai evoluir.” Não é assim (risos), a gente quer os melhores caminhos, mais fáceis, sucessos, felicidades, e é óbvio que, quando um filho fala que é gay, você pensa: “Caramba, as pessoas vão ser duras com ele, cruéis.” E essa foi a minha preocupação. O meu marido da mesma forma, ele sempre teve muito receio do que os outros poderiam fazer com ele.
Eu sou muito de me colocar, então não tem como ensinar meu filho a ficar calado. No sábado era um momento para se manifestar. Ele não estava pedindo pra ficar andando na rua com “viado” escrito na testa. Ele estava se colocando oportunamente num instante adequado, que era o de manifestação. Tanto que ele comentou comigo: “Ô, mãe, esse movimento poderia ser o das minorias, né, e não das mulheres.” E eu disse: “Mas filho, as mulheres puxaram e os outros estão [se] agregando.” Tanto que tinha a questão racial, LGBT... E aí ele botou 'viado'.
Coincidentemente, mas eu não acredito em coincidências, essa amiga dele estava com outro rapaz cuja mãe é de um grupo chamado Mães Pela Diversidade. Aí pensei: “Não vou deixar ele sozinho.” Eu não queria que ele botasse [a inscrição “viado” na testa], porque eu queria poupar ele. Mas, já que ele botou, não ia deixar ele sozinho se expondo. Então eu falei com a amiga dele: “Está bom, escreve aí 'mãe de viado'. Porque, já que ele é o viado, a mãe do viado está aqui. Se alguém vier se engraçar, eu estou aqui.” Então não foi uma coisa elaborada e as pessoas começaram a pedir para tirar foto.
Honestamente, não esperava essa repercussão toda. Eu não tenho Twitter, não tenho Instagram, só Facebook, e olhe lá, porque eu mal dou conta de administrar isso. Eu mesma quase não posto. E aí hoje [segunda-feira] uma aluna minha me escreveu d me falou que acordou no domingo, abriu o Twitter e a nossa foto estava lá com 50 mil likes. Eu nem tenho ideia do que seja isso. Só que aí muitos alunos do meu marido começaram a mandar mensagens dizendo que estavam muito aborrecidos por causa das coisas ruins que estavam sendo associadas à foto.
Comecei a ver que muita gente estava usando-a para falar coisas horríveis. Entrei em algumas postagens e denunciei. Já acumulamos material e vamos a uma delegacia especializada.O meu marido tem muitos alunos que são mais conservadores que ficaram indignados com as coisas que falavam da gente. E aí você vê como acontece quando as pessoas humanizam a relação. Porque é muito fácil você falar mal da mãe do viado e do viado. Agora e se você conhece e sabe que a “mãe do viado” é a Talita, que é a professora, que é advogada, que faz trabalho social, que é uma pessoa do bem, que é uma pessoa que tem família, e o Rafael, que é um menino talentoso, que é artista, que canta maravilhosamente bem e a pessoas são apaixonadas por ele, que é um menino educado?
Nós somos uma família que tem uma preocupação de passar para os nossos filhos ensinamentos éticos, valores que são cristãos, mas que também estão em outras crenças, porque a lei do amor é a que prevalece. É isso que a gente ensina dentro de casa. E essa foto representa isso. Olha, eu chorei na manifestação de sábado com os meninos me abraçando. Eu acho que nem eu tinha noção de que existia isso, eu fico emocionada de lembrar. Os garotos não me conheciam, mas viam escrito na minha testa “mãe de viado” e vinham de bracos abertos, me abraçavam, eu abraçava eles, e aí falavam: “Muito obrigado por você estar fazendo isso. Minha mãe nunca faria isso, ela não gosta de falar sobre isso, ela não me aceita.” Eu pensei: “Nossa, ele está me abraçando, mas ele quer ser abracado pela mãe dele.”
Fomos para a Parada Gay domingo. O meu marido e o caçula também foram, para mostrar que a família está do lado. A gente viu mensagens do tipo: “O pai deve estar chorando no banheiro essa hora”, “Não tem pai”, porque houve em algum momento no cenário um comentário por aí dizendo que famílias sem pai são desestruturadas. E ele fez questão de mostrar: “Não, eu estou aqui, eu estou do lado. Tem pai, sim, pai que ama e é orgulhoso.” Fiquei surpresa. Não imagina que a postagem dele fosse repercutir tanto.
Queremos falar sobre amor, solidariedade, aceitação, sobre a necessidade das famílias começarem a observar que o acolhimento é remédio. Porque aquela mãe que pensa assim: “Poxa, meu filho é gay, todo mundo vai cair em cima dele, vai constrangê-lo, vai humilhá-lo.” O mundo vai ser cruel, mas a família pode estar do lado. Dói menos quando a gente recebe a paulada junto. Eu prefiro apanhar junto dele do que deixar ele apanhar sozinho. Então eu acho que é isso: pai e mãe acolhem, não importa.
Não existe explicação. Por que alguém é gay? Tem um monte de tese. Não tem explicação. Tudo faz parte do se conhecer. No processo de autoconhecimento, alguns se percebem interessados por pessoas do mesmo sexo, por pessoas do outro sexo, por pessoas de ambos os sexos... E, à medida que se percebe assim, por que a pessoa tem que negar isso, abafar, “não, eu não posso”? Você é. Nós, pais, o que a gente precisa é acolher. E foi o que eu fiz com o Rafael, desde pequeno. Eu nunca fiquei incentivando ele, dizendo: “Ah, então seja mesmo.” Eu sempre achei que ele como criança tinha que esperar, dar um tempo, não ter tanta pressa para definir. Mas é do temperamento dele, ele sempre foi muito precoce e, à medida que ele se viu gay, para mim nem tinha outra alternativa. Enquanto mãe, a única coisa que eu tenho a fazer é acolher e estar do lado dele. E orientar. Porque eu realmente acho que é criança, é adolescente, tem que ter cuidado mesmo.
No nosso cotidiano, nossa vida, nossa família, entre nossos amigos a gente sempre fez questão de mostrar que apoiava [o filho]. E vou te falar que, se tem uma coisa que me comoveu, e eu lamento muito, foi ver que tantos jovens não têm esse apoio, eu lamento por tantas famílias que não conseguem olhar para aquele filho, para aquela filha e simplesmente dizer: “Eu amo.” O resto a gente aprende a lidar. O resto vamos trabalhar, vamos discutir, depois a gente vê como vai lidar com o resto. Mas para filho, para filha é só amor. Se os nossos não encontrarem na gente esse refúgio, vão encontrar em quem? Foi o que mais mexeu comigo e, apesar de todos os ataques que a gente sofreu, pelo menos eu falei assim: nossa, a gente está fazendo um bem para muita gente.
A minha mãe e o meu pai se separaram depois que ele saiu da cadeia, porque ele se converteu lá dentro, virou evangélico, e quando saiu foi percorrer o mundo, foi ser missionário. Estudei em colégio católico praticamente a vida toda, então eu trouxe essa religiosidade pra minha vida, mas há um tempo que ela não é institucionalizada na vida da gente. Nós somos cristãos e eu acredito muito no bem, pratico o bem. Anos atrás, eu estava voltando à noite da faculdade, havia muitas crianças naquela região ali da Leopoldina, tinha uma chorando e eu falei para o meu marido: “Olha só, não consigo fingir mais que não estou vendo.” A gente começou a ter iniciativas de fazer um trabalho com instituições. Junto a outros voluntários, fizemos trabalhos em abrigos de crianças e adolescentes.
Acho que o que eu quero para o meu filho é o que toda mãe deseja: que ele seja bem-sucedido, que ele seja feliz, que ele encontre o espaço dele no mundo. Para os meus dois filhos, é isso que eu quero.