O canal, localizado no extremo sul da América do Sul, liga os oceanos Atlântico, na Argentina, e Pacífico, no Chile, é definido como "santuário de espécies marinhas" e foi motivo de disputas entre os dois países. Segundo especialistas, a produção de salmão em cativeiro tende a causar desequilíbrio ambiental.
O boicote de cozinheiros argentinos surgiu depois que o Beagle passou a ser alvo de grandes produtoras do salmão de cativeiro, gerando um debate que levou à criação de um projeto de lei impedindo esse desembarque, de acordo com biólogos, ecologistas e economistas ouvidos pela BBC News Brasil.
A criação de peixes de cativeiro no mar vem sofrendo vetos em algumas partes do mundo. Na Dinamarca, a ministra de Meio Ambiente, Lea Wermelin, defendeu nesta semana que a piscicultura não seja ampliada porque, segundo ela, a atividade prejudica o ambiente marinho – ela estima que o futuro desta produção seja em terra.
Nos Estados Unidos, o governador de Washington, Jay Inslee, anunciou que restringirá os peixes de cativeiro, incluindo o salmão nas águas do Atlântico, a partir de 2025. Segundo ele, a atividade representa "um risco para o salmão natural". A medida foi tomada, segundo a imprensa local, depois da fuga de salmões de cativeiro na região.
'Fim do Mundo'
A decisão de tirar o salmão de cardápios reúne cerca de 60 cozinheiros da Argentina. Famosa por programas na televisão e por prêmios internacionais, a chef Narda Lepes tem um restaurante em Buenos Aires e defende que o salmão possa ser substituído por peixes argentinos, como a truta patagônica, e produtos frescos.
"Se a indústria de salmão desembarcar no canal do Beagle, seu ecossistema deve ser prejudicado", disse Lepes em entrevista à BBC News Brasil por telefone. Ela não oferece salmão no seu cardápio há mais de um ano.
Lepes afirma que o objetivo não é prejudicar a comunidade japonesa e os pequenos restaurantes de sushi, que tradicionalmente usam esse peixe, "mas devemos estar alertas e informados com o que comemos e como protegemos nosso meio ambiente".
O cozinheiro Francis Mallmann, que tem dez restaurantes na Argentina, no Uruguai e nos Estados Unidos, decidiu excluir o salmão da carta há cerca de três meses. "Nos últimos 30 anos, cozinhamos milhares de salmões. Há dois ou três anos começamos a escutar um zunzunzum sobre alguns problemas no Chile e a questão dos antibióticos (dados a salmões de cativeiro). Acho que nunca é tarde para fazer mudanças e começar de novo."
O chef afirmou ainda que se "informou muito" sobre o "impacto da indústria do salmão de cativeiro" e que sua "intenção é colocar um freio não só no Beagle", mas "em todos os lugares".
Como Narda, Mallmann afirmou que passou a preferir outros peixes presentes na costa argentina, como a merluza e o cherne, ou "peixes selvagens" de outras regiões, onde estão seus restaurantes. "Não acho que meus clientes sintam saudades do salmão."
Dono do restaurante mais antigo de Ushuaia, Lino Adillón afirmou que esse salmão de cativeiro poderia afetar o habitat de outras espécies locais, como a santola, um dos símbolos marinhos da região, já que o rompimento das jaulas de cativeiro vem levando à fuga destes peixes.
Cativeiro x selvagem
Segundo o biólogo argentino Gustavo Lovrich, há salmão natural em poucas partes do mundo, a exemplo do Alaska e do Mar do Norte, mas a produção em cativeiro superou a pesca natural e passou a liderar esse segmento. Para especialistas, a salmonicultura pode ter ajudado a preservação dos estoques naturais de salmão, já que reduziu a pressão da demanda.
A ração usada no cativeiro pode ser feita, por exemplo, a partir de resíduos do processamento de peixes capturados para esse fim. Há também uso de antibiótico e de corante sintético ou natural, este produzido, por exemplo, a partir de compostos carotenoides (pigmentos naturais encontrados em alimentos como a cenoura).
Os principais mercados consumidores são Japão, União Europeia e América do Norte. A produção total chega a 1 milhão de toneladas.
No Brasil, o consumo de salmão se popularizou ao longo dos últimos anos devido ao aumento da criação do peixe no Chile. Em 2006, o Brasil importava 10 mil toneladas do peixe do país vizinho. Dez anos depois, passaram a 80 mil.
A importação levou a uma redução do preço e propiciou um aumento significativo do consumo de peixe no país, algo considerado positivo por especialistas do ponto de vista nutricional.
Consumo recomendável
A nutricionista brasileira Viviane Lansky, professora da área de Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e consultora da Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), afirma que o consumo de salmão, sendo ou não de cativeiro, é recomendável.
"Os pescados são recomendáveis à saúde, porém a composição nutricional dos peixes criados em cativeiro depende da ração que é fornecida (a eles), principalmente os teores de ômega 3. Isso quer dizer que o salmão de cativeiro poderá ter mais ou menos ômega 3 que o salmão selvagem, dependendo da composição da ração", disse Lansky.
Segundo ela, "animais de cativeiro podem conter resíduos de antibióticos e outras substâncias, mas os produtores devem seguir as regulamentações específicas para que não haja risco a saúde do consumidor".
Por sua vez, o Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento informou que o produto importado só é liberado para a comercialização no Brasil após cumprir exigências, como o registro do "processo de fabricação e ingredientes, além do rotulo a ser utilizado no Brasil" e "avaliações de higiene e de transporte".
'Chefs de Nova York estão felizes com o salmão'
Em entrevista pelo telefone, o presidente da câmara do setor no Chile rechaçou qualquer efeitos nocivos do produto à saúde. "Os chefs de Nova York estão felizes com nosso salmão. Sabem que é um produto rico em proteína, com ômega 3 e baixos níveis de gordura. É um produto sustentável, mas os chefs de Buenos Aires o criticam. Talvez eles prefiram carne", disse o presidente da Salmón Chile, Arturo Clément.
Segundo ele, o antibiótico é usado quando o peixe é pequeno, como prevenção contra vírus, mas quando o produto chega ao consumidor não possui antibiótico. "Nós realizamos mais de 60 mil testes por ano para garantir a qualidade e os cuidados necessários do salmão. Exportamos para mais de cem países e dentro das exigências internacionais", disse.
Quando perguntado sobre o impacto negativo no oceano, apontado por biólogos, Clément respondeu que as jaulas (ou 'balsas jaulas' do cativeiro) são retiradas do lugar, periodicamente, para deixar o "mar descansar".
O presidente da câmara chilena disse ainda que a polêmica com o Beagle não envolveu empresas chilenas – a imprensa local citou empresa da Noruega – e que também acha que o canal deve ser preservado para o turismo, por exemplo.
No início deste mês, segundo a imprensa do sul da Argentina e do Chile, uma empresa norueguesa foi retirada de Puerto Williams que fica no território chileno, em frente a Ushuaia por descumprir com as exigências locais.
Meio Ambiente
Segundo estudiosos, que participam do debate sobre a indústria de salmão, os cativeiros seriam uma ameaça ao ecossistema do canal de Beagle que tem águas pristinas, como disse o biólogo Gustavo Lovrich, do Centro Austral de Pesquisas Científicas (CADIC, na sigla em espanhol), em Ushuaia, capital da Terra do Fogo.
"Os lobos marinhos são atraídos pelas jaulas, podem rompê-las e os salmões fugirem. Quando estão livres, os salmões competem pelos mesmos alimentos que os pinguins, como as sardinhas, por exemplo.", disse. Lovrich, disse ainda que o impacto ambiental do salmão envolve outros problemas. Para ele, tanto os resíduos sólidos, como restos de comida e fecais, como os líquidos, a urina (do salmão), afetariam a saúde do Canal de Beagle.
"Os sólidos se acumulam perto das jaulas e matam todos os animais que vivem no fundo. O fósforo e nitrogênio que a urina de tantos salmões juntos possuem atuam como fertilizantes para as algas e geram um desenvolvimento de algas tóxicas, como as ondas vermelhas", disse o biólogo.
A ecologista Martina Sasso, diretora da ONG 'Sin Azul no hay verde' (Sem Azul não há verde), de proteção dos oceanos, disse que o movimento em defesa do Beagle, que conta com o apoio dos chefs argentinos, se justifica, entre outros motivos, "pela defesa das águas" do planeta e que é ali "o único lugar da Argentina onde a Cordilheira se junta com o mar e deve ser preservado".
O professor de economia de desenvolvimento da Universidade Nacional de Terra do Fogo, Juan Ignacio García, acha que se esta indústria desembarcar ali, que é uma das escalas para a Antártida, e uma das maiores fontes de renda da província, seria "terrível". "Os números mostram que a geração de empregos seria muito baixa e ainda ameaçariam nossa economia", disse.
"Como não temos esta produção e esta cultura, nos preocupamos com que a geração de emprego não seria para a Argentina, mas para o Chile, onde esta indústria existe", afirmou. Para García e para Lovrich, o respaldo dos cozinheiros contribui para a defesa do Beagle.