Casarão da Serra Negra: memórias em ruínas

Projetado como uma casa-fortaleza, destinado a durar “uma eternidade”, é hoje uma construção com a estrutura abalada pelo descaso público

Serra Negra | Alcide Filho
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Considerado uma preciosidade mundial da arquitetura com influência portuguesa, uma relíquia por ter sido construído com pedra e adobe ainda no século XVIII, o casarão da Fazenda Serra Negra, erguido sobre um promontório no município de Aroazes, exibe ameaçadores sintomas de desmoronamento. Projetado como uma casa-fortaleza, destinado a durar “uma eternidade”, é hoje uma construção com a estrutura abalada pelo descaso público, uma força destrutiva com o poder de um terremoto acima de 7 na Escala Richter. Mas ainda há como salvá-lo.

O projeto Heritage of Portuguese Influence (“Patrimônio de Influência Portuguesa”), realizado entre 2007 e 2012, uma pesquisa mundial sobre arquitetura e urbanismo patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian, faz, em um dos seus três volumes, referência destacada sobre o casarão da Fazenda Serra Negra, erguido no município piauiense de Aroazes.

A construção se distingue das muitas ainda existentes no Brasil por sua vocação fortificada, adequada aquele tempo histórico em que o isolamento do meio rural deixava casas sujeitas a ataques de índios e forasteiros. A forma e estrutura do casarão alcança maior relevância arquitetônica por ter uma capela interna, consagrada à “Santana Mestra”. Estrategicamente situada entre os aposentos nobres e a sala de refeições, a capela revela a religiosidade dos proprietários.

A descrição do casarão, destacado em publicação de consulta internacional, teve a participação do Arquiteto campo-maiorense Olavo Pereira. Para ele, “o casarão da Serra Negra é uma relíquia, um ser histórico. Perdendo esse ser, perderemos um encontro com a História”, completa. Com data de construção concluída em 1766, conforme inscrição talhada em uma pedra encontrada no local, a sede da fazenda “Serra Negra” é um testemunho do poderio alcançado por uma das mais férteis fazendas de gado do Brasil.

Localizada na divisa dos municípios de Aroazes e Santa Cruz dos Milagres, a menos de 200 km de Teresina, a sede, abriga um episódio da História do Piauí que interessa ao mundo e ao Brasil. A construção tem sólidas paredes de quase oitenta centímetros de largura e estrutura do teto e cobertura feitas de carnaúba. Currais de pedra com paredões ainda de pé, embora a maioria esteja em ruínas.


Preservar é importante pelo seu valor histórico e cultural



 

A riqueza histórica e cultural do casarão da Fazenda Serra Negra vai além da construção e inclui, em sua vizinhança, vestígios pré-históricos de ocupações humanas anteriores à colonização, o povoamento e a independência do Piauí, como o que está presente no sítio arqueológico do “Letreiro da Pedra Furada”. O sítio está a menos de 3 quilômetros do casarão e é um outro tipo de tesouro esquecido: em uma pedra gigante estão pinturas rupestres em tons vermelho, formando um painel de rara beleza. Para preservar tantas valiosas conexões de perguntas feitas no passado com respostas ainda em silêncio no presente, o casarão da Fazenda Serra Negra foi tombado por uma Lei Estadual referenciada em legislação federal. O objetivo: proteger o que é considerado de valor histórico para o povo brasileiro.

O tombamento de um bem histórico e cultural significa que obrigatoriamente passa a merecer um cuidado especial, incluindo manutenção, restauro e investimentos de recursos financeiros, concentrados no esforço de impedir que literalmente venha a tombar ou desmoronar. Foi isso o que determinou o Decreto nº 12.135, de 15/03/06, assinada pelo então governador Wellington Dias, amparado pela Lei nº 4.515 de 09/011/92, que dispõe sobre a proteção do Patrimônio Cultural do Piauí. Caberia à FUNDAC, Fundação Cultural do Piauí, encaminhar as providências práticas para o efetivo cumprimento do que foi determinado. Passados 8 anos da providência assinada, o tombamento no papel inda está parado. Mas o tombamento do teto, paredes e a descaracterização arquitetônica como um todo, por conta do descaso e a ação corrosiva do tempo, esse está acelerado.



Histórias e estórias da Serra Negra 

O casarão de 14 cômodos e quase 500m2 da Fazenda Serra Negra é uma prova da existência de seu dono, o lendário Luís Carlos Pereira Abreu Bacelar, senhor de escravos, poderoso e temido na região. Conhecido também como Luís Carlos da Serra Negra, o fazendeiro, descendente de portugueses, era condecorado pela Coroa de Lisboa e membro da junta governativa em um passado que o Piauí ainda fazia parte da província do Maranhão. Luís Carlos criou lendas, como a de uma escrava fujona que lhe negou carícias exclusivas e por conta disso foi serrada ainda viva em um ritual de tortura. O próprio Luís Carlos teve um final infeliz e coberto de mistérios: após sua morte em 1811, seu corpo nunca foi encontrado. Contam os antigos que o próprio Luís Carlos tinha pacto com o demônio. E que teria participado de rituais de bruxaria. Quando morreu, assassinado em uma emboscada, seu corpo sumiu durante o transporte para o enterro. Teria sido levado por praticantes de uma seita secreta que surpreenderam os escravos que o levavam dentro de uma rede. Jamais foi encontrada a sepultura de Luís Carlos. O povo local conta que muitos dos desafetos e escravos fujões do dono do casarão foram punidos de modo selvagem. Ou eram lançados vivos dentro de um poço ou deixados em um curral de pedra, onde onças também eram criadas com dieta de carne humana.  Fontes históricas, consideradas fidedignas, desfazem a imagem sádica de Luís Carlos. “Alguns escravos de Luís Carlos eram seus companheiros de armas”, conta seu descendente, o professor de matemática Lossian Barbosa Bacelar Miranda. Como prova de "sua humanidade", cita que o Regente Dom João legitimou três filhos que Luís Carlos teve com a mestiça Narcisa Pereira e, ao falecer, Luís Carlos deixou testamento igualitário entre eles e os dois outros filhos nobres do casamento que teve com Luzia Perpétua Carneiro de Souto Maior Bacelar.  

 


O que se perde perdendo o casarão da Serra Negra

Os indícios já encontrados no casarão e sua vizinhança revelam que seja de fato uma construção do século 18 e que assim pode desvendar detalhes de como foi a ocupação do interior brasileiro naquela época. Por isso é necessário preservar o conjunto do sítio histórico. “O casarão da Serra Negra é um ser histórico”, qualifica o arquiteto Olavo Pereira. Ao perdermos “esse ser”, perdemos contato direto com a história e assim empobrecemos mais, defende. A recuperação do casarão e a inclusão dos sítios arqueológicos em seu entorno, transformariam um lugar esquecido em um produto turístico pronto para ser visitado e lembrado. Aplicados recursos que transformem o casarão em ponto de visitação turística, com roteiro elaborado, enriquecido de serviços profissionalizados, possibilita o acesso da população a um patrimônio histórico que lhe pertence, além de movimentar a cadeia produtiva do ecoturismo.  O próprio casarão é uma obra da arte de construir na época do Brasil colonial. A estrutura de madeira surpreende e tem uma solidez que desafia o tempo. Traves, ripas e caibros ainda originais sustentam o telhado. Blocos de pedra pacientemente talhados estão presentes em uma construção destinada a durar para sempre. A Fazenda Serra Negra tem conexões históricas a partir do ano de 1730, o início do povoamento da região, quando os jesuítas fundaram a Missão de Aroazes. Em 1740, D. Manoel da Cruz, Bispo do Maranhão, criou a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição. Formaram-se três grandes fazendas que utilizavam escravos para seus serviços, sendo a fazenda Serra Negra a mais importante.  

Serra Negra, um casarão que aguarda socorro 

O casarão da Serra Negra hoje está em terras particulares que pertencem ao Grupo Empresarial cearense Edson Queiroz.  Desde 2006, passaram-se oito anos do tombamento e nenhuma obra para impedi-lo foi feito. Um Procedimento Prévio Investigatório (PPI) instaurado pelo Ministério Público Estadual foi encaminhado para apurar o grau da sua degradação e propor medidas no sentido de sua preservação. Audiência pública, realizada na sede da fazenda, em 30 de março de 2010, estabeleceu metas e determinou prazos a serem cumpridos com celeridade. O documento resultante desse encontro assim determina:  “...um  anteprojeto arquitetônico de restauração da sede antiga da Fazenda Serra Negra será apresentado pelo representante do Grupo Edson Queiroz e submetido à apreciação da FUNDAC no prazo de 60 (sessenta) dias contado desta data; por sua vez, a FUNDAC analisará o projeto e buscará dados com as instituições pertinentes no prazo de 90 (noventa) dias, contado do recebimento do projeto, também sendo de sua incumbência informar ao Ministério Público do Estado do Piauí acerca da apresentação do projeto, bem como de outras notícias relacionadas ao caso”. As ações previstas no texto estão firmadas e assinadas entre Ministério Público, FUNDAC, IBAMA, UFPI, UESPI e Grupo Edson Queiroz. Consta que o anteprojeto foi apresentado, mas unanimemente reprovado por uma comissão designada a apreciá-lo. Segundo o arquiteto Olavo Pereira, entre outras impropriedades, constava a transformação do casarão em uma escola, instalação de ar-condicionado e a construção, na área interna do casarão, de “banheiros modernos”. Nesta quinta-feira, 18 de setembro de 2014, documento protocolado junto ao IPHAM-PI, registrado com o número 1041311, solicitou providências sobre o drama do tombamento anunciado do Casarão da Serra Negra. A inciativa, motivada por voluntários do Movimento Pense Piauí Identidade, cobra respostas para uma pergunta que não quer calar: sem identidade, quem somos e em que nos tornaremos?     

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